"A HORA DA SAUDADE"

 

"Like the roses need their fragrance,
Like a sweetheart needs a kiss,
Like the summer needs the sunshine,
Like a Laddie needs a Miss;
Like a broken heart needs gladness,
Like the flowers need the dew,
Like a baby needs its mother,
That’s how I need you."

Esta é a letra do refrão de uma canção escrita no ano de 1912. Embora, como sabemos desde Schubert, a música tenha o condão de transfigurar os versos de gosto mais duvidoso, é muito pouco provável que encontremos, no século XXI, um compositor de canções capaz de nos fazer esquecer o indisfarçável kitsch de um material verbal deste tipo. A meio de todo o caminho, a pedra da Segunda Grande Guerra, contexto para o filme “A hora da saudade”, realizado por Vincente Minnelli quando ele ainda prometia vir a ser um autor sofisticado por razões que pouco tinham a ver com tecidos ou papel de cenário.
Ainda que o cineasta não tivesse sido a primeira escolha para dirigir este título surpreendente, e a sua estrela Judy Garland andasse a batalhar para diversificar os géneros do seu brilho, ou então precisamente por causa de tudo isso, “A hora da saudade” traça uma elegante tangente ao cinema musical. Não mais, mas sobretudo não menos! O momento em que a rádio começa a sussurrar “Like the roses need their fragrance…” e o ouvinte que há muito tempo pedira esse disco caro à história do seu matrimónio leva um murro acidental que o deixa indisponível para a canção; ou o pequeno-almoço que Joe e Alice tomam após a noite de núpcias, de tal modo íntimos que, como um velho par, já não precisam de trocar palavras, a ausência de verbo imprimindo uma estranha beleza coreográfica aos gestos de puro quotidiano – talvez sejam os melhores momentos musicais de toda a obra de Minnelli. "O que me interessa não é como as pessoas se movem, mas sim o que as move”, terá dito Pina Bausch.
A Nova Iorque da primeira metade da década de quarenta do século XX é o lugar por excelência onde já não se consegue ouvir atentamente a nossa canção. Mas a verdade é que esta ainda passa na rádio. O seu fantasma de certo modo protege o encontro casual de um soldado em licença com uma rapariga solteira – aliás, só quando a rapariga conta o enredo do filme à oficial em quem deposita a esperança de reencontrar o soldado, é que o espetador se apercebe de que, sem o espírito da canção, tudo teria afinal o ar prosaico de uma história de engate…
Mais do que fazer comédia romântica, Minnelli parece querer demonstrar que a está a fazer (distanciamento que catalisa a consciência). Note-se como ele coloca espetadores do par nas duas cenas de refeição em público, sinalizando o quanto o consumidor desse género de filmes sonha que um amor se forme, se consolide no ecrã. Aliás, se o título do filme em português fosse a tradução simples do seu título original, perceber-se-ia logo a exemplaridade com que ele exibe o cliché central do género: o contrarrelógio que é preciso vencer para firmar a eternidade. Naquela época, o casamento ainda teria este último prestígio (a duração), mas dele já andaria por certo arredado o sentido de urgência. Ora, em tempo de guerra, é preciso limpar muito bem os valores por que se está a lutar. Os Aliados haveriam de vencer, Minnelli e Garland acabariam por se casar. O que se passaria a seguir não foi bonito a nenhum dos níveis, mas aqui a fase era de propaganda e de namoro.
A canção, ainda mais incisiva por não ser mais que evocada, embate com a ética do realismo que a Guerra veio exigir ao cinema. O enredo é instável, quase tão fragmentário quanto a experiência efetiva da vida. O que de cinematograficamente aventuroso se abre para Joe e Alice é a mera realização ocasional do trabalho de outrem, a entrega noturna de leite ao domicílio (um trabalho que com toda a certeza era ignorado por quem vivia na cidade e por quem frequentava a sala de cinema). O genuíno à-vontade com que as duas vedetas convivem com intérpretes pouco conhecidos e com a justa adequação dos production values à humildade cenográfica pressuposta pela narrativa (um luxo diante da propensão da M.G.M. para o exibicionismo!) gera um clima de intimidade de tal modo credível que faz com que a sequência da igreja (provável evocação da “Aurora” de Murnau) se mostre dolorosamente sincera. “Breve encontro” estreou no mesmo ano; em 2003, “O amor é um lugar estranho” comprovou que as estratégias de Minnelli e David Lean tinham toda a frescura do futuro.
Pois, como já se insinuou, a cidade é um cenário bifronte. É evidente que só nela podemos conceber que as fitas ruborizem de burocracia e não de chancela autoral, que a violência embriague a noite até à inconsequência ou que o tumor da desconfiança interpessoal se metastize até às crianças. Mas a verdade é que, numa cidade, também há quem viva tranquilamente de acordo com protocolos desusados; numa cidade, o mesmo transeunte que impede pode, no instante seguinte, ser o que facilita em definitivo; numa cidade até há igrejas. As relações velozmente estabelecidas entre Joe, Alice, o leiteiro Al e a sua mulher parecem constituir uma aldeia oficiosa no coração de Nova Iorque (a coincidência muito improvável do secretário do juiz ser primo do leiteiro… isso pertence a uma poética da cidade ou a uma poética do campo?). Não se sabe se aldeia durará, claro, mas o filme permite que se induza uma rede infinda de tribos urbanas onde os mais de sete milhões de nova-iorquinos vão encontrando as condições necessárias a uma habitabilidade afetiva.
Minnelli sabe que a sua espécie está sentenciada à grande cidade. Mais tarde ou mais cedo, os personagens de “Encontro em St. Louis” terão mesmo de abandonar o seu conforto provinciano – e, se pensarmos especificamente no percurso de Garland, quão longe estamos já do Kansas de “O feiticeiro de Oz”!... O seu soldado em licença tem de aprender as virtudes de tal habitat. Parte do charme do filme tem, aliás, a ver com a candura dessa didática que, por muito que a urbe tenha evoluído no pós-guerra, continua a fazer algum sentido. Ainda que, se alguma coisa de definitivo se pareça formar em “A hora da saudade”, em grande medida se deva à energia de permanência que o provinciano Joe começa a distribuir desde que põe os pés no cenário paradigmático da indiferença (ele que, num momento de bravura formal, é transportado por uma carruagem de metro até ao grande plano da câmara como se esta fosse uma estação).
A cidade é o balanço imperfeito entre encontro definitivo e definitivo desencontro. Está cheia de almas gémeas que nunca, mas nunca, se encontrarão. Joe e Alice estão cientes, aliás, de que a sua escolha mútua é demasiado cançonetista e se arrisca a ser estraçalhada pela realidade. Simplesmente (e como argumentar contra isso?), já lhes é mais insuportável ficarem separados do que juntos na incerteza. No mundo contemporâneo, os amantes já não são empurrados para o casamento por todo um cenário. O casamento já não é um corolário sociológico, mas sim um ato de fé. Os amantes, com toda a liberdade e toda a responsabilidade de um karaoke, têm de assumir os votos de amor com a sua própria voz.


Título original: "The clock"
Data de estreia: 1945
Realização: Vincente Minnelli (1903-1986)
Interpretação: Judy Garland, Robert Walker, James Gleason, Lucile Gleason, Keenan Wynn

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