"O SOL DO MARMELEIRO"

Para quem entende a prática do cinema como forma de conhecimento, a assunção de um projeto fílmico só faz sentido quando ele se apresenta promissor enquanto experiência, enquanto aventura. Essa ética terá em grande medida determinado a modéstia quantitativa da obra de um autor tão rigoroso quanto Víctor Erice. No entanto, há que dizer que, tendo a este cineasta cabido a sorte (ou o azar?) de realizar a sua obra-prima ficcional logo à primeira longa-metragem (em 1973), quase toda a filmografia subsequente parece ser sobretudo uma espécie de explicação desse notável “O espírito da colmeia” (um pouco como Baudelaire explica “As flores do mal” em “O spleen de Paris”). “O sul” (1983) propõe um esboço de concretização dos dilemas afetivos da célula familiar e acompanha a passagem da infância para a adolescência com a verbalização de muito daquilo que, em “O espírito da colmeia”, se mantinha impossível de dizer. Os ansiosos dez minutos de “Alumbramiento” (2002) concentram tudo no elemento da urgência: urgência de salvar a criança, de documentar um mundo a desaparecer, de combater o horror. E o ensaio “La Morte Rouge” (2006) desvenda, com a ambiguidade usual no autor, o material autobiográfico que está na base deste edifício romanesco tão idiossincrático quanto lapidar.
Foi ao aproximar-se da dinâmica paradocumental que Erice encontrou uma verdadeira alternativa no seu percurso. No fim do verão de 1990, Antonio López García revelou ao seu amigo cineasta que iria tentar, pela primeira vez na vida, pintar os efeitos da luz solar num marmeleiro. Para Erice, o projeto afigurou-se especialmente sugestivo na medida em que conhecia um dos sonhos recorrentes do pintor, no qual se estabelecia uma ligação inconsciente entre esse motivo vegetal, a infância do artista e a experiência de uma luz decadente que parecia endémica do universo onírico. Era preciso filmar tal processo criador, com plena consciência de que o trabalho de documentar deve menos a uma captação efetiva do real do que à reflexão sobre qual é o sentido e quais são as possibilidades de o captar.
O real deve ser tido como pedra-de-toque de um pensamento que pode andar muito longe do ouro. Mas talvez só se chegue a tal maturidade no momento do outono, o do artista (54 anos de idade no momento da rodagem), o do marmelo, fruto emblemático de tal estação. A própria disponibilidade para um tema vegetal parece uma prerrogativa de homens que já não confiam obsessivamente nas ilusões do desejo ou da ideologia. Se algo de um imaginário orientalizante se pode encontrar no registo da atividade do pintor é apenas a conjetura subentendida de que, se o perigo contra o qual um homem luta só for qualquer coisa exata, simples, tão justamente dimensionada como uma árvore, o resultado da batalha estará porventura tão longe da alienação como a Guerra do Golfo está longe do local de trabalho do pintor. O artista contemporâneo não se distingue apenas por poder escolher temas que não resultam de uma comissão (um “Cristo”, uma “Virgem”, etc.), mas sobretudo por poder escolhê-los com sabedoria, por intuir, à maneira de Alan Watts, que a intervenção humana é normalmente menos eficaz para livrar a água da turvação do que deixar a própria água entregue a si mesma.
Antonio López percebe agora o que significam alguns dos conselhos que os seus professores lhe tinham dado na juventude. E, embora a decadência esteja já a comprometer o seu corpo, ele age com tanta vitalidade como o mítico pintor Michelangelo nos últimos anos da sua vida, ou como os frutos que, diante de si, insistem em crescer a despeito do progresso da podridão. Tal esplendor outonal é, contudo, uma exceção. A civilização pode ter saído da infância quando percebeu que os seus monstros eram políticos e não metafísicos (“O espírito da colmeia”), mas não é provável que alguma vez encontre maturidade para duvidar da sua capacidade para ultrapassar tais dilemas, seja pela esquerda, seja pela direita. Porque tudo se teria resumido, afinal, à escolha acertada do dilema. E agora talvez seja tarde.
Na sua aparente indiferença pela lufa-lufa dos que se preocupam com assuntos vastos e complexos (com resultados vasta e complexamente trágicos), “O sol do marmeleiro” é tão explicitamente antibélico como o apogeu ficcional de Erice. Se as intervenções do pintor na realidade são tão belas como as formas que ele produz na tela, isso deve-se à modéstia com que o pincel marca os frutos da árvore, à delicadeza com que uma cana soergue as folhas dela, à elegância com que o Homem pode afinal dialogar com o Mundo sem se tomar por mais inteligente do que este. Para o pintor, a realidade não é apenas uma categoria estética, mas também política – ela ensina-o a saber o que um indivíduo pode e o que não pode e, a partir de tal conhecimento, orienta a sua ação para que esta tenha a potência exata de quem comunica muito mais do que conflitua. Conversa-se com destinatários de outras línguas e latitudes (a professora chinesa), conversa-se com amigos de longa data e, se se pode conversar sobre um pintor do passado, também pode o futuro viabilizar conversa a propósito do trabalho de López. A cigarra e as formigas da construção civil colaboram, respeitam-se, as diferentes utilidades dos seus trabalhos nunca chocam porque correm em paralelo. Uma pintura vale a reconstrução de uma casa. Da casa do Mundo.
Diz-se que Antonio López reconstituiu a vida da aldeia na grande metrópole madrilena. Essa irreverência dimensional não equivale, contudo, a uma forma de inadaptação. O que López reivindica é um património solar, muito mais devedor do equilíbrio helénico que do dramatismo cristão – dramatismo que ainda sobreviverá nas guerras mais ou menos santas de que a rádio dá notícias e contra o qual cada uma das suas pinceladas pretende ser uma ofensiva de pura alegria. É como se ele tivesse necessidade de pintar sempre de modo a que a figura representada não pareça ter andado na Guerra da Coreia (como dizia um professor ao seu grande amigo Enrique, a propósito de um Apoxiomeno pintado na juventude)… Poucos atores poderiam ter interpretado tão singular personagem, já que não há sorriso, olhar ou tom de voz de López himself que não faça transparecer a sua entrega à luminosidade.
Curiosamente, apesar de respeitar o seu personagem tanto como este respeita a sua árvore, Erice parece vir trazer o malefício da dúvida em relação à forma como ele gosta de se pensar e apresentar. Jean-Louis Leutrat terá sido dos primeiros críticos a perceberem que a queda da esfera de vidro no chão, no instante em que López adormece até à analogia com o finamento, é uma citação da abertura do “Citizen Kane” de Orson Welles. É nesse momento que o próprio pintor narra aquele seu sonho recorrente que tanto inquietou o cineasta: na verdade, trata-se de uma espécie de pesadelo que nos leva a perguntar se a consciência da morte não se aloja no ser humano logo no período da infância. Se a Ana de “O espírito da colmeia” estivesse viva em 1990, teria uma idade muito aproximada à do pintor. Ambos permitem que o cineasta exprima uma visão do mundo atravessada por uma luz sombria, que não é a da noite, nem a do ocaso, nem a da aurora
Porque é que López, querendo fixar um instante de luz natural, não segue o exemplo dos impressionistas e acelera a execução de um quadro até este ter a aparência eloquente de um esboço – o esboço que precisamente equivale ao conceito de instante? Porque é que ele recusa esse infravermelho e se vê assim projetado até ao ultravioleta do inacabado, ou melhor, do inacabável? Será apenas porque pretende ser justo com aqueles parâmetros formais que os impressionistas tiveram de abdicar em função da velocidade do seu processo? Ou será antes porque a luz que pretende registar numa tela será menos a luz real, natural, instantânea, do que o trauma de uma luz trágica que o consciente não admite? Será López, magnífico personagem pelo qual todos sentimos carinho, realmente solar? É uma dúvida, não uma afirmação.
Em todo o caso, convém sublinhar que “O sol do marmeleiro” não é um autorretrato velado do seu realizador, apesar de algumas coincidências biográficas e criativas com a figura do pintor. É certo que a obra de Erice é escassa, e que até conta com um filme inacabado no seu rol (“O sul”). Isso deveu-se, contudo, a razões de financiamento, completamente alheias à vontade do realizador, que sempre se mostrou incomodado com os elogios críticos à incompletude desse seu projeto. Erice é mais dado a não-começar obras, do que a não-as-terminar. Parece mais provável que ele se sinta tão afetivamente diverso do seu personagem, como este se sente do seu marmeleiro. É muito mais uma questão de convívio, de estar-com, do que de uma qualquer vampirização simbólica.
Maior semelhança haverá certamente entre os processos de pintar ao ar livre e de filmar em exteriores (muito para além da evidente sujeição de ambos aos caprichos climáticos). Por exemplo, a candura das modificações que López impõe à realidade para a poder pintar serão muito semelhantes à leveza artesanal que se adivinha na rodagem que captou o seu labor. E os tracinhos nos frutos e nas folhas que lhe permitem regular a coerência da pintura ou do desenho a despeito do movimento lento, mas inegável, da árvore, podem com segurança ser tomados como metáforas do esforço de raccord a que todo o cineasta se entrega. Se os impressionistas se mediam pela fotografia, López parece quase querer pintar como quem faz cinema. Dito de outro modo, se a pintura se aproxima da fotografia na medida em que o tipo de imagem que origina é também sem-tempo, na verdade o processo de produzir essa imagem é mais afim do cinema que do clique de Cartier-Bresson. Quando o cinema toca numa imagem, mesmo que esta seja estática, ele transforma-a em movimento. O cinema revela que não existem imagens sem movimento. E por isso não existe luz sem o seu reverso sombrio, não existe infância onde já não habite o velho, ou talvez mesmo o cadáver, não é possível a imagem definitiva para um olhar honestamente moderno.


Título original: "El sol del membrillo"
Data de estreia: 1992
Realização: Víctor Erice (1940-?)
Presenças: António López García, María Moreno, Enrique Gran

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