"A RAPARIGA MAIS FELIZ DO MUNDO"

 

Há filmar e filmar, há divergir e criticar. Enquanto criador de anúncios comerciais, o romeno Radu Jude não terá sido certamente o realizador mais feliz do mundo. A verdade é que, na sua primeira longa-metragem de ficção, ele se empenhou em tornar claras as diferenças entre publicidade audiovisual e um cinema de lucidez. E isso vê-se, de imediato, nas várias estratégias realistas que o filme convoca para se demarcar do manancial de artimanhas com que, desde sempre, se tenta vender banha da cobra a quem quer comprar gato por lebre. É o caso da caracterização do grupo de personagens principais, pródiga em detalhes que não deixam margem para dúvidas quanto à sua origem e contexto social (curiosamente, o espetador português que não tenha nascido ontem, conseguirá reconhecer alguns conterrâneos do seu passado nestes hábitos romenos de haver uma mãe munida de garrafa térmica com uma bebida que sabe mal mas faz bem, ou de uma rapariga ter o cuidado de dar uma limpadela a um assento de pedra antes de nele sentar a sua roupa de cerimónia…). Outra estratégia é aquela que imiscui a possibilidade do documentário no seio de uma ficção, como aqui se faz a propósito do comportamento de uma equipa de rodagem profissional, ou da movimentação diurna numa praça urbana (neste caso, a Piața Universității, cuja notoriedade recente advém do seu papel crucial na Revolução que, em 1989, depôs o regime de Nicolae Ceaușescu).
Em todo o caso, a tensão mais subtil estabelece-se a um nível formal, no contraste entre os objetivos dos personagens filmadores de publicidade (que pretendem que cada novo take que tentam fazer seja melhor do que o anterior, mas demonstram grande relutância em mudar os dados da mise en scène) e a câmara de Radu Jude, que regista cada investida dos filmadores ficcionais de um ponto de vista diferente, novo. Jude compara a imagem que os publicitários estão a desenvolver (não a vemos, mas podemos facilmente imaginá-la) com todos os ângulos do fora-de-campo da sua filmagem, fazendo desse fora-de-campo o algodão que impede que nos enganemos quanto à verdade do produto que sairá de tal esforço. A câmara de Jude não procura o melhor take – o primeiro plano e o background estão constantemente a ser invadidos por elementos que são muito significativos do ponto de vista contextual, mas completamente irrelevantes para a narração ou para uma composição equilibrada. Esse passar em frente à câmara que está a filmar parece mesmo uma espécie de erro elementar de realização. Mas, assim como a beleza de uma jovem rapariga no fundo não resulta da sua maquilhagem, a exigência de uma imagem cinematográfica depende sempre de uma justificação que transcende todas as convenções estéticas. Um exemplo para que se perceba melhor: quando Delia discute com o pai pela primeira vez, a câmara ficcional (que, nesse momento, está a rodar um outro anúncio) tapa-a por completo; este incómodo formal está, contudo, prenhe de sentido, pois o que Delia obterá do ato de ser filmada daí a instantes, será pouco mais do que a obliteração da sua pessoa.
Faça-se aqui um parêntesis para mencionar que, no excelente “Má sorte no sexo ou porno acidental” (2021), quando o autor volta a discutir o papel que uma imagem acrítica consegue ter na usurpação do poder de uma figura feminina, uma opção formal semelhante não parece produzir resultados tão libertadores. A deambulação da protagonista pela cidade de Bucareste é constantemente acompanhada por movimentos de câmara que, abandonando a personagem por instantes, vão insinuando outras possibilidades ficcionais que seriam com toda a certeza mais produtivas do que a fixação na vida sexual de um indivíduo. O problema é que, ao fim de quatro ou cinco cenas baseadas no mesmo dispositivo, o espetador começa a prever que, a cada novo plano que se irá seguir, a câmara efetuará sempre essa rotação para fora da narrativa. À errância da personagem não corresponde, portanto, uma verdadeira errância de montagem. Ora, o caráter repetitivo da ação de “A rapariga mais feliz do mundo” (reiteração dos takes de uma filmagem) potencia a eficácia da incessante mudança de ponto de vista com que essa ação é observada. Ecoando o nexo que na praça se estabelece entre a fixidez da fonte e o tumulto das pombas, o título de 2009 oferece ao espetador um prazer semelhante ao dos filmes de Max Ophüls: o prazer de ir conhecendo progressivamente todos os pontos de um círculo que se sabe ser fechado.
A própria estrutura narrativa não embandeira em arcos e flechas de peripécia, mas atém-se ao paralelismo rigoroso entre duas ações que o espetador acaba por tomar como equivalentes: a instrumentalização da figura de Delia por uma equipa de filmagem para produzir um conteúdo publicitário e a persuasão dos pais da rapariga para que esta assine um contrato, que é a forma como, no mundo capitalista, as pessoas abdicam livremente da sua liberdade. A uma dada altura, a relação pais-filha torna-se mesmo puramente negocial, o que só pode fazer o espetador rir com amargura. Enquanto isso, os criadores audiovisuais simplificam as manobras próprias do seu saber-fazer (motivar o intérprete, velar pela integridade do texto, etc.) até que este se assemelha a um delito de flagrante autoridade. Uma espécie de ricochete de leitura faz pressupor que a arte de realização de Radu Jude, possibilitando a eclosão de um sorriso no rosto de Andreea Bosneag que não destoaria numa célebre parede do Museu do Louvre, primará por outro tipo de relacionamento entre quem filma e quem é filmado: Serge Daney defendia que as fitas politicamente empenhadas deveriam fazer-se acompanhar do documentário tácito das suas condições de fabrico.
O sorriso, essa pedra-de-toque que tanto avalia a arte como a vida… Os personagens de Jude parecem ser motivados por desejos simples (o miúdo de “Lampa cu căciulă”, por exemplo, apenas queria arranjar a televisão a tempo e horas de poder ver um filme com o Bruce Lee…). O discurso dos pais de Delia, que se opõe à vontade que esta tem de ir passear no seu carro novo com uma amiga, recorre a um realismo tão postiço que leva a que o espetador se solidarize com a puerilidade mimada da rapariga. Enquanto corre para tentar captar a luz de uma infância prestes a extinguir-se, Radu Jude mostra como a sinceridade de se sentir infeliz pode ser o único reduto de liberdade em alguns contextos (aos quais não é alheia a democracia dita liberal). Assim como o “Crash” de David Cronenberg nos leva a imaginar quantas taras sexuais viajam em todos os carros desconhecidos que por nós passam, este filme transforma o intenso fluxo automóvel de uma metrópole na imagem multiplicada da circulação da tristeza num mundo onde, pela lei da publicidade (tão diferente da de Chico Buarque), toda a gente é obrigada a ser feliz.

Nota: Este texto foi incluído no livro "A forja", caderno do primeiro curso de crítica de cinema promovido pelo Batalha Centro de Cinema.

Título original: "Cea mai fericită fată din lume"
Título em Portugal: "A rapariga mais feliz do mundo"
Data de estreia: 2009
Realização: Radu Jude (1977-?)
Interpretação: Andreea Bosneag, Violeta Haret-Popa, Vasile Muraru, Serban Pavlu, Luminita Stoianovici

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