"THE ROBBER SYMPHONY"

 

Era uma vez um filme encantado pelo esquecimento. Os seus artistas saltimbancos, os seus polícias e ladrões com mais aniki bóbó que violência gráfica, as suas fortunas escondidas sob o colchão da cama – os espetadores achariam que tudo isso pertencia já à história, de modo algum à imaginação. Nesse filme, havia, contudo, tantas desgraças causadas pelo fogo, pelo vento, pela chuva ou a neve, que talvez todas as épocas lhe pudessem fornecer um beijo-alvo capaz de o desenfeitiçar – desde os cientistas antigos às crianças contemporâneas!
Havia isso, e havia outras preciosidades – por exemplo, um enredo completamente desastrado, como é de rigueur no género narrativo-musical (ópera, inclusive). Faça o espetador as contas: o dinheiro que os bandidos do filme gastam em pianos e burros não deve andar longe do tesouro de que eles se querem apoderar através de tal milagre da multiplicação… Com a devida poupança, teriam concretizado todos os seus sonhos financeiros! Mas a verdade é que, se a coisa não é para ter o rigor de um mito grego ou de um Flaubert, então mais vale expor a brincadeira com descaramento, em vez de andar a fingir que a manta é séria quando os americanos vão pintar para Paris.
E, como as desgraças nunca vêm em par solitário, já em 1936 o espetador deveria sentir algum desconforto perante a estética sonora de “The Robber Symphony”, perante essa preguiça para dar conta de todos os ruídos essenciais que existiriam em cada situação (vemo-los a serem produzidos, mas não os ouvimos); perante o irrealismo das opções de mistura; perante algumas performances verbais, tão excessivas ou ininteligíveis que quase desejaríamos que elas estivessem a soar num filme dez anos mais velho, quando as pessoas pareciam falar muito alto apenas porque sabiam que não iriam ser ouvidas.
À incompetência dos bandidos corresponde a naïveté da conceção do filme. E, como sempre acontece quando a ingenuidade é genuína, não se sabe se “The Robber Symphony” é um produto apenas serôdio ou se contém em si uma séria ameaça de futuro. Quase contemporâneo de “Tempos modernos” de Chaplin, também ele parece articular a alternativa de um cinema sonoro que tomasse a música, e não o diálogo, como espinha dorsal. Afinal, Friedrich Feher tanto assume a realização como a direção da orquestra que fornece a música para o primeiro filme composto da história.
Por tudo o que já foi dito sobre a obra, percebe-se que, nela, os efeitos de reconstituição verosímil são retorcidos até ao puro descaramento de uma parábola. As semelhanças de género com o conto de fadas são, aliás, expressivas. Por exemplo, o menino protagonista tem uma mãe afetuosa, mas a figura de referência masculina (que tem o mesmo sexo que o seu) é incerta e flutuante: do bandido que lhe quer fazer mal ao carvoeiro inesperado que toma a sua defesa, passando pela fraqueza do avô que dorme durante o essencial da aventura. O ator protagonista é, na verdade, filho da intérprete que repete o papel materno no elenco do filme, e do próprio Friedrich Feher, que se mantém eloquentemente escondido atrás da câmara e da batuta… Outro exemplo evidente encontra-se na provação solitária pela qual a criança precisa de passar, a montanha nevada assumindo a função que o bosque costuma ter nos contos tradicionais.
Em todo o caso, a chave de leitura da parábola não é, aqui, rudimentarmente psicanalítica (e por isso talvez não seja necessário retirar ilações fálicas da palhinha com que o menino se revela um atirador de primeira). Gritada a plenos pulmões pela figura da vidente, a questão em debate é a da moralidade da figura mítica do artista. Deverá este ser objeto de preconceito em função do seu estatuto boémio? Por não assentar para pagar renda, por ter filhos sem matrimónio, por gostar do vinho e da sedução, por fumar em idades francamente desadequadas para tal? A deriva da criança pela desmesura branca da neve serve para ela se imbuir de um profundo contraste perante o chefe dos bandidos, adequadamente conhecido como Black Devil (Diabo Negro). Pois o que determina a real inocência do menino e da sua família de saltimbancos é que, ao contrário dos bandidos, não é o dinheiro que eles amam.
A inocência de Giannino deriva da sua relação com o instrumento musical familiar. Numa sequência suficientemente louca para merecer lugar numa antologia bem pensada, o rapaz revela-se tão apto a contrariar a ideia de que os pianos são objetos produzidos em série como o príncipe da Cinderela elevava a indústria do calçado às alturas do amor. Enquanto um dos meliantes distrai a turba com uma exibição de passeio sobre corda-bamba (preparando o iminente futuro simbólico do rapaz, como se confirma no pesadelo que este terá), os animais de estimação de Giannino impedem que ele confunda o seu instrumento com os meros semelhantes. A estima entre criança e piano cresce e vai adquirindo laivos épicos, até ser óbvio que o objeto se assume cada vez mais ser vivo para o seu paladino. Única moral relevante: um instrumento de música só oferece o tesouro que esconde àquele que o conhece como mais ninguém. Àquele que o ama.
A família Feher encontrava-se exilada por causa do antissemitismo germânico dos anos 30, mas é muito provável que a pátria evocada na canção inicial desta sua última criação, a Itália da mais importante língua associada à música, seja a própria arte, ou melhor dizendo, o mito da arte. Pois, assim como nos contos de fadas não se alude à dureza factual de um casamento para a vida inteira, também “The Robber Symphony” não propõe imagens do espinhoso estudo que se exige a um estudante de piano para este poder reclamar o ouro sensual e espiritual que há na música. Aliás, o piano do filme até toca por si mesmo... Graças à fantasia, estamos tão longe do documentário como do sermão. Mas como há de este filme poder ser usado como instrumento de encantar numa escola de ensino da música, se ele tem mais de dois anos de decrepitude, se é apenas a preto e a branco, se em nenhum momento tem a eficácia calculista de uma montanha-russa ou de um vídeo do Tik Tok?


Data de estreia: 1936
Realização: Friedrich Feher (1889-1950)
Interpretação: Hans Feher, Magda Sonja, George Graves, Alexandre Rignault, Michael Martin Harvey



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