"A MINHA NOITE EM CASA DE MAUD"

Para Éric Rohmer, o cinema definir-se-ia muito menos pela autonomia de uma linguagem que pela capacidade de restituir o real com vigorosa exatidão. Não é difícil descobrir fragilidades nesta tese (basta comparar os fantasmas bidimensionais que assombram os ecrãs com a presença em carne e osso dos atores que pisam os palcos…), mas ela é o fundamento de uma estética singular. Os filmes rohmerianos são arenas de confronto entre a função do cinema como o meio mais eficaz para registar um mundo que o ultrapassa e no qual não intervém (nos seus escritos chegou a defender que bastava ligar a câmara de filmar para três quartos do trabalho cinematográfico estar feito…) e a ambição desajeitada da palavra para pôr e dispor, para baralhar e voltar a dar, para o pensamento e para a poiesis.
Nunca, como Josef von Sternberg, Rohmer filmaria “Marrocos” na Califórnia, e nunca usaria a Paris do seu tempo para, como Jean-Luc Godard, insinuar uma “Alphaville” do futuro. É teoricamente estimulante interpretar esta espécie de pudor como o respeito do cristão pela natureza assinada por Deus e a submissão do conservador perante as formas de organização humana que supostamente foram testadas e afinadas ao longo dos séculos. Mas se a grande inovação tecnológica do cinema oferece a possibilidade paradoxal de dar a ver e a ouvir melhor um mundo que esse cinema não criou nem ousa recriar, que papel tem então a criatividade da palavra no sistema rohmeriano?
Entre 1963 e 1972, o mais velho dos autores da Nouvelle Vague (se restringirmos esta estiqueta aos cineastas franceses que começaram a filmar no fim da década de cinquenta do século passado, após um longo período de escrita crítica nos Cahiers du Cinéma) realizou a sua série de Seis Contos Morais. Todos os contos seguem o mesmo arquétipo narrativo: um homem só compreende profundamente a solidez do seu compromisso amoroso com uma determinada mulher depois de mudar de opinião sobre o caráter e o poder de sedução de uma segunda mulher que durante algum tempo o perturba eroticamente.
“A minha noite em casa de Maud”, terceiro capítulo da série mas quarto a ter sido filmado, foi o grande sucesso inicial de Rohmer (nomeação para os Óscares de Melhor Argumento Original e de Melhor Filme Estrangeiro!), o que é francamente notável: um ano após as convulsões libertárias do Maio de 68, surgia esta obra a contracorrente, reivindicando que as relações eróticas são de tal modo condicionadas por interditos de cultura que os humanos se veem obrigados a articular o seu corpo literal com uma espécie de corpo verbal que, não deixando de ser corpo e, por isso, eminentemente erótico, atinge o seu mais alto grau de liberdade quando consegue fazer passar a parte mais desestabilizadora do erotismo para o domínio da palavra.
Os personagens rohmerianos são incansáveis tagarelas? Sim, mas de que falam eles? Rohmer há de fazer filmes de tema político, mas a quintessência da sua poética é esta espécie de contínuo Simpósio onde todos os indivíduos se tornaram pequenos filósofos por causa do sexo e do amor. Jean-Louis, personagem cuja luminosidade é encenada com toda a discrição cara ao cineasta (e que bem foi tudo isso percebido pelo ator Jean-Louis Trintignant!), reivindica que é uma pessoa alegre, mas que essa alegria só se manifesta quando ele se encontra na companhia de uma mulher que o toque do ponto de vista sensual. Embora sonhe de modo quase infantil com uma rapariga cuja identidade desconhece mas que já toma por futura esposa, ele passa de facto uma noite com a sedutora Maud. Ora, se é uma noite apenas verbal, não será menos erótica por causa disso: o suspense que acompanha a possibilidade de Jean-Louis cair ou não cair em tentação permite que o espetador se torne uma espécie de voyeur da sensualidade do pensamento no exato momento em que ele está a ser provocado. E, como é óbvio, se o pensamento é sensual, a seriedade com que considera o seu objeto não o livra da volubilidade ambígua que é própria de um fundamento corpóreo.
O protagonista do quinto conto (“O joelho de Claire”) diz que se vai casar apenas porque tudo na vida parecia conspirar para o aproximar de uma determinada mulher. E o marido do episódio derradeiro (“O amor às três da tarde”) confessa que a sua monogamia não é mais que uma adesão à ordem instituída da sociedade. O desejo manifestado pelo cineasta de contemplar indivíduos e destinos muito diferentes entre si não impede que tomemos “A minha noite em casa de Maud” como o momento em que é revelado o substrato ideológico de toda a série dos Contos Morais. Não tanto porque Rohmer reivindique o papel sociológico do cristianismo, mas, precisamente porque na época do filme o casamento já é uma questão muito menos comunitária do que individual, a estabilidade de uma relação se tornou uma questão de fé, uma questão de aposta firme nos seus infinitos benefícios.
A razão de Jean-Louis fá-lo então acreditar (ou pelo menos querer acreditar) que a fidelidade a uma mulher depende apenas da beatitude dessa aposta, ou seja, não requer um esforço penoso de renúncia. A verdade, contudo, é que, quando a plenitude do sono afasta o seu corpo da salvaguarda verbal, ele quase acaba por sucumbir aos seus instintos mais desarmados. E, ainda que Rohmer não aprecie as metáforas visuais, será possível não estabelecer uma relação entre a ocupação ofuscante do ecrã pele neve durante o passeio no dia a seguir à célebre noite e a brancura igualmente insistente da colcha da cama de Maud, da colcha sob a qual vibrava o calor de um corpo que para sempre ficou por conhecer?
Não parece haver outro misticismo em Rohmer que não seja a ignorância sobre o que afinal acabou por proteger o protagonista da infidelidade. Foi apenas a sua vontade consciente? Foi a grandeza irracional do seu sonho? Uma questão de graça divina? Ou tudo isto combinado? A palavra gira sem cessar em torno do assunto, mas, por muito que só ela possua competência para pôr um grãozinho de perplexidade na engrenagem dos desígnios de Deus, estes ultrapassam-na sempre, elegantemente prescindindo de toda e qualquer tragédia.
Esta esperança fundada na dúvida terá sido em grande medida sugerida a Rohmer pela reviravolta quase mágica com que, no célebre filme “Aurora” (1927), o realizador Friedrich Murnau restabelece a perfeição de um casal após o contacto que marido e mulher travam com o mais extremo horror que se erguera no seu seio. Em todo o caso, há uma diferença essencial entre o mote mítico e as glosas tingidas pela modernidade: ao contrário do autor alemão, Rohmer concede muito mais atenção à mulher que assume o papel de potencial amante do que àquela que usufrui de toda a legitimidade relacional.
Essas segundas mulheres são muito diferentes entre si. Desde a Suzanne do segundo conto, que surpreende pela capacidade para triunfar sobre os seus imaturos abusadores, à Haydée que o prólogo de “A colecionadora” descreve como destituída de corpo verbal e consequentemente incapaz de provocar nos homens qualquer sentimento de ternura. Maud será porventura a mais fascinante dessas figuras. Quando a madrugada leva um semi-adormecido Jean-Louis a quase ter sexo com a sua tentadora, mas é incapaz de o fazer efetivamente dobrar esse “quase”, Maud indigna-se com uma tirada de difícil interpretação: “Gosto de pessoas que sabem o que querem!” Estará ela apenas aborrecida por ter sido sexualmente preterida, ou a sua mágoa será muito mais profunda, será a mágoa da mulher que por instantes acreditou que o discurso do cristão sobre a felicidade simples da fidelidade poderia vencer a pulsão erótica do corpo quando desguarnecido de verbo? Terá sido ela que afinal foi tentada, tentada por uma utopia amorosa, a despeito da ideologia que a afasta de Jean-Louis?
Em “A padeira de Monceau”, o protagonista masculino é várias mostrado a deitar lixo para a rua. Essa crueldade perante o descartável é aquilo que Rohmer não se cansa de filmar na maneira como os caprichosos machos dos Seis Contos Morais se servem das suas tentadoras para fortalecerem os laços com as suas eleitas. A tentadora deixa mesmo de ser mencionada no título do último capítulo da série (algo inédito até aí), e só podemos temer pela fortuna dessa abandonada Chloé, cuja propensão para o suicídio é várias vezes sublinhada ao longo de “O amor às três da tarde”. O mundo caro aos conservadores deve a sua inquestionável eficácia à precisão com que alguns indivíduos têm de ser expulsos da felicidade. Pelo menos nesta fase da sua obra, Éric Rohmer não pretendeu enganar ninguém.



Título original: "Ma nuit chez Maud"
Data de estreia: 1969
Realização: Éric Rohmer (1920-2010)
Direção de fotografia: Néstor Almendros
Interpretação: Jean-Louis Trintignant, Françoise Fabian, Marie-Christine Barrault, Antoine Vitez




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