"UM CASO DE VIDA OU DE MORTE"

 

Cinco dias antes da rendição da Alemanha nazi, em maio de 1945, um piloto inglês salta sem paraquedas das alturas de um avião em falência e não morre… Quando não é possível explicar um acontecimento aparentemente inexplicável, mais vale exercer o sadio agnosticismo de pensar que o que não tem remédio, remediado está, e passar ao problema seguinte. Passar para a estranha convicção que devem ter sentido os humanos que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial de que o adiamento da sua morte em condições tão adversas para tal pode quase ser entendido como uma modalidade insólita de direito.
Independentemente de quais fossem as suas convicções religiosas, Michael Powell e Emeric Pressburger escolheram claramente o seu campo de batalha cultural: o direito à vida (que, no fundo, é o direito a adiar a morte) requer uma atitude de desvalorização sistemática da transcendência. Aquilo que, numa primeira instância, chama a atenção em “Um caso de vida ou de morte” é a ironia quanto à possibilidade humana de imaginar um Além. A sublime direção de arte de Alfred Junge é praticamente reduzida a escombros pelo tom muito caseirinho com que as almas mais ou menos mortas a vão confrontando. Do fenómeno astronómico que lembra “um crachá dos escuteiros” ao bom e velho nevoeiro inglês que leva a que se cometa o primeiro erro em mil anos nos implacáveis escritórios da Morte, passando pela máquina distribuidora de Coca-Cola que recebe o jovem estado-unidense quando ele chega ao Além (e que terá sido uma exigência de Powell ao arrepio do gosto do seu cenógrafo) ou pelo anedótico odor a cebolas fritas que acompanha a aparição do emissário do outro mundo, tudo aponta para que seja o sorriso, mais que o final feliz, que reclama “Comédia” nesta “Divina” extravagância. Aliás, a citação cultural que o filme mais desenvolve é a que remete para um teatro ridículo, tal como Shakespeare o concebeu em “Sonho de uma noite de verão”.
O trabalho do diretor de arte parece, aliás, tão irrisoriamente ávido quanto o do figurinista se mostra preguiçoso. Vejamos: Bob Trubshawe chega ao Além com a sua farda militar. Porquê? Apenas porque morreu em tais atavios? E porque é que, vários dias depois, quando decorre a grande cena de tribunal, ainda tem a mesmíssima roupa? Nem a puta do casaco tirou… E porque é que, no anfiteatro desse tribunal, as pessoas estão todas vestidas da mesma maneira, de acordo com os clichés mais apropriados para o discurso e a dramaturgia em exercício? E por que carga de sangue, suor e lágrimas, continua a indústria têxtil a ser relevante no outro mundo? A principal iconografia que sobre ele nos chegou é, afinal, mais inclinada a despir do que a vestir as almas – fator que certamente terá influenciado o julgamento do protagonista do filme sobre a sua situação vital após a queda do avião, quando, tendo começado a livrar-se da farda, encontra na praia uma criança nua que parece um pastor…
Os realizadores não levam a sério a possibilidade de representação do Além. Compare-se a ausência de perplexidade com que os seus personagens dialogam com o mundo imaginário (mesmo o protagonista se habitua rápido demais à possibilidade de estar a ser visitado por um fantasma) com a incredulidade de George Bailey diante do seu anjo em “Do céu caiu uma estrela” (título estreado no mesmo ano). A resistência do personagem de Frank Capra apenas torna mais plena a aceitação final – a necessidade de uma ética cristã para o capitalismo funcionar. Ele precisava de duvidar e duvidar e duvidar de algo que é demasiado sério e verdadeiro para poder ser assimilado de ânimo leve. Já as figuras de Powell e Pressburger chegam ao Além e continuam a ficção apenas como se tivessem mudado do quarto para a sala, ou da rua para a praça… É apenas uma “piada estratosférica”.
Ou então é uma reflexão muito séria sobre o desfasamento entre uma contemporaneidade naturalmente invadida por lirismo futurista e o imaginário do contexto imemorial que engendrou a noção de Além. Peter Carter, o tal piloto que, como tudo indicava que deveria ter morrido, julga mesmo estar morto, diz que detestaria que as “asas” com que se imaginam as almas dos domínios celestiais tivessem sido, entretanto, modernizadas
Pois a modernidade com que é preciso acelerar a iconografia do Além não é a da tecnologia ausente na féerie de Dante Alighieri ou Hieronymus Bosch (exercício a que se dedicou Jean Cocteau, por exemplo), mas a da política. Aos mitos de Orfeu e Alceste, é preciso anexar o de Píramo e Tisbe, ou seja, a avaliação da dificuldade de convívio entre vizinhos. Com grande velocidade, os autores deste filme perceberam que os Aliados só poderiam dizer “We won!” quando tivessem percebido que, terminada a guerra corpo a corpo, as trágicas questões levantadas pelos nacionalismos se iriam reconfigurar em temperaturas mais adequadas ao combate verbo a verbo.
É já um passo em frente, de facto, que a contenda (surpreendente para um público do século XXI) entre Montéquios britânicos e Capuletos estado-unidenses seja resolvida por um tribunal. Mas é a própria ética com que Powell e Pressburger assumiram esta e outras encomendas de propaganda que se mostra capaz de curar a ferida ao tocar na ferida: a prova da superioridade da Inglaterra face ao inimigo nazi só poderia ser dada pelo facto de os seus advogados de defesa serem críticos da Inglaterra (da violência de toda a sua história patriótica). Dizer que o amor e a amizade (note-se que, neste filme, quem acaba por funcionar como Alceste é o amigo médico!) importam mais do que a pertença a este ou àquele lado da barricada não é mero senso comum, mas uma consequência da desvalorização sistemática da transcendência.
Há muitas escolhas criativas, neste filme, que reivindicam este mundo com os plenos pulmões de quem o viu, pela segunda vez na história, despromovido a adjetivo para o nome “guerra”. Parecem todas um bocadinho desajeitadas, para falar com franqueza. Seja a apologia do médico como herói político-filosófico dos tempos modernos, por ter, nas suas mãos, a faculdade de adiar o fim da vida (e é sintomático que, numa época em que a psicanálise estava na moda, Powell e Pressbuger não tivessem deixado ao Diabo o ónus de escolher uma coisa que parecia menos obscura como a neurociência). Seja a celebração dos sentidos – é certo que muitos momentos do filme (a primeira viagem de motorizada do médico, o jogo de ténis de mesa), ao assumirem a componente áudio antes da componente vídeo, ecoam a prova cega da conversa inicial entre Peter e June com grande subtileza formalista; mas uma certa imperícia no domínio do camp (que flores e lágrimas tão feias!) e a tentação de servir lirismo em modo pop condenam a história de amor a poder passar por história da carochinha. Ora, bastava mergulhar num tom mais declaradamente patológico para nenhum espetador conseguir duvidar que um homem e uma mulher jovens (ou seja, numa idade facilmente impressionável pela sensualidade), submetidos à pressão imensa de uma situação de guerra, pudessem desenvolver uma obsessão mútua apenas porque, sem se verem ou tocarem (e é fundamental que tenha sido assim), foram auditivamente contemporâneos da possibilidade de um deles morrer…
Em compensação, o filme atinge a altitude do génio quando, ao mostrar-nos a praia inglesa de Staunton Sands do ponto de vista de quem vai cair para morrer e, portanto, vê tudo “clearly and at once” (do ponto de vista também da camera obscura do médico), nos leva a crer que estamos a contemplar o Além. Ao contrário do que acontece com a reconstituição cenográfica, aqui queremos acreditar e acreditamos mesmo que pode ser! Não há paródia nem camp: o que vemos tem uma beleza inequívoca. Ora, na verdade, trata-se de uma imagem realista do nosso mundo, do mundo Aquém, em relação ao qual basta uma alteração dos dados ficcionais para ele nos parecer… paradisíaco. O real é, pode ser, o maior depósito de imaginação. Como diria Marcel Proust, não é preciso ver novos sítios, mas ter novos olhos para ver os sítios conhecidos como novos.
Até pode haver praias mais bem filmadas na história do cinema (se bem que Jack Cardiff fosse um campeão da direção de fotografia). Mas estes segundos de imagem em movimento, que adquirem a máxima potência poética em virtude do rigor com que a montagem cinematográfica os posiciona, bastam para nos impedir de enlouquecermos de transcendência.

Título original: "A matter of life and death"
Data de estreia: 1946
Realização: Michael Powell (1905-1990) & Emeric Pressburger (1902-1988)
Direção de fotografia: Jack Cardiff
Interpretação: David Niven, Kim Hunter, Roger Livesey, Raymond Massey, Marius Goring, Robert Coote

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