"A PALAVRA"

Os cristãos pedem ao seu deus este mundo e o outro: curas de enfermidades, descolagens em segurança, vitórias desportivas… É quase certo, contudo, que o vício mendicante não resista à pedra-de-toque do apóstolo Tomé: quem, no seu perfeito juízo, acreditaria que uma ressurreição seria de facto entregue no endereço assinalado na encomenda? E, no entanto, o homem religioso é precisamente aquele que confia menos no absoluto da morte do que no horizonte experimental aberto pela palavra.
Nos seus filmes sonoros, Dreyer adotou um tom invulgar de partilha da palavra oral, justificando-o das mais variadas maneiras: em “Dia de cólera” pretendeu sugerir a suposta serenidade coloquial do século XVII, em “A palavra” pediu ao ator Preben Lerdorff Rye para imitar a cadência e a cor vocal de um louco específico, em “Gertrud” ousou suturar o filme com instantes de silêncio que permitissem ao espetador assimilar e refletir sobre o texto… O mais certo, contudo, é que essas obras tivessem sonhado encontrar a sonoridade da palavra tal como ela fora virtualizada no esplendor da estética muda – quem consegue sobreviver à realização de um título como “A paixão de Joana d’Arc”? Alude-se sempre à visibilidade do invisível no cinema do autor dinamarquês, mas não haverá menor evidência de silêncio nas vozes dos seus intérpretes: a palavra que eles emitem é sempre anterior e posterior à sua humanidade, significa sempre mais e menos que a concretude do discurso.
Em todo o caso, a transição do mudo para o sonoro trouxe uma liberdade técnica que ajudou Dreyer a superar o maniqueísmo espetacular da sua obra-prima sobre a Donzela de Orleães. Pois, se neste filme, as perguntas dos juízes pérfidos e as respostas da mártir inocente tinham de ser separadas por via da montagem para que o espetador tivesse acesso aos intertítulos que revelavam o teor concreto das trocas verbais, o facto de este tipo de trocas passarem para o domínio auditivo permitiu que o realizador começasse a reduzir a quantidade de cortes vivuais dentro de cada cena por si filmada. Se logo no “Vampiro” surgem experiências nesse sentido, é em “A palavra” que Dreyer levará este processo até a um primeiro rasgo de maturidade, ao preencher quase toda a fita com planos-sequências que lançam um olhar tolerante sobre os personagens do texto de Kaj Munk no qual ela se inspira (um pouco à maneira de Jean Renoir, admitindo as razões de toda a gente).
Vejamos, seja qual for o tipo de fé que possamos conceber, esta tem uma dimensão inelutavelmente coletiva. A realização da palavra de alguém depende sempre da solidariedade que outrem nele deposite sem quaisquer reservas. Se o mais positivo dos filmes de Dreyer é rematado por um milagre que se tornou célebre, e se esse milagre se apresenta claramente verosímil ao espetador, isso deve-se em grande medida ao facto de o sectarismo que está na base da situação narrativa ser encenado com planos-sequências que contrapõem, a esse estado das coisas, a materialização visual da etimologia da religião, o re-ligare. Quando a criança dá a mão ao louco para que este possa alterar a ordem aparentemente inevitável dos fenómenos, o gesto é apenas o coroar da energia agregadora com que o olhar da câmara contagiara a ação até a esse momento.
Durante todo o filme, a câmara move-se com a doçura que associamos ao adágio musical, patenteando os movimentos de aproximação e afastamento entre os personagens e a íntima relação destes com o espaço onde se movem. O ritmo lento é a evidência do equilíbrio profundo que compõe o mundo de “A palavra”, equilíbrio entre o trabalho e as relações afetivas, entre a oração e o prazer do café, entre a dimensão maternal e erótica da mulher, entre a possibilidade de confrontar os olhos do outro e a premência de se recolher no próprio pensamento. Entre a crise manifesta e a ânsia palpável da sua reparabilidade. É o ritmo de uma ruralidade idealizada, essa que é claramente ultrapassada pelo par de “Eles apanharam a barcaça” na sua aceleração fatal até à morte. É o ritmo da domesticidade, ou talvez seja mais rigoroso dizer o ritmo de uma vida simples, que se opõe às altas esferas eclesiásticas ou sociais onde decorrem as narrativas dos filmes negativos do autor.
Exatamente como em “Dia de cólera”, é um funeral que conclui a ação de “A palavra”. Johannes, que tivera na loucura a sua forma de aprendizagem (palavras de J. M. Fernandes Jorge), ainda que nessa cena final já pareça curado, continua a acreditar como um louco na probabilidade da ressurreição. Ora, o ator que interpreta este personagem de fé inconsútil é precisamente o mesmo que, em “Dia de cólera”, representara o avatar de um Judas incapaz de acreditar no amor benigno da protagonista. E se é uma criança que coletiviza a fé de Johannes até à sua plena materialização, isso também contrasta com “Dia de cólera”, onde a sequência funerária é introduzida por um extraordinário movimento de câmara conduzido pelo coro de crianças que estivera perversamente a cantar na cerimónia de imolação de uma pretensa bruxa. Ou seja, apesar da harmonia descrita no parágrafo anterior, a verdade é que o milagre de “A palavra” se dá apenas por um triz… Mas porquê?
Dreyer não nega que a autoria da palavra-que-faz-sonhar seja masculina (a figura do poeta em “Gertrud” é a esse respeito paradigmática). Mas ele parece muito mais atento àqueles seres que, permanecendo fora da órbita de poder da moderna sociedade patriarcal, tentam com toda a sinceridade cumprir a promessa dessa palavra que apenas receberam. O alienado e a imatura em “A palavra”, os serviçais de “Amo e senhor” e “O vampiro”, e sempre, sempre as mulheres: são eles (e só eles) que agem. Joana d’Arc escutou com toda a atenção a palavra religiosa e política, agiu… e fracassou (pelo menos no que concerne à sua própria pessoa). Gertrud chegou mais perto do essencial, escutando a palavra amorosa, agiu… mas em grande medida também fracassou. Em “A palavra”, Inger ouviu o verbo que incita a viver, ouviu a palavra mais essencial de todas, e conseguiu regressar dos mortos! Mulher, criança e louco realizam uma espécie de ato de fala como nunca John Austin poderia ter concebido. E é talvez esta redução (quase herética…) do fervor religioso ao âmago vital que permite que, por um triz, o milagre ecuménico de “A palavra” se realize.
O filme granjeou sucesso logo na sua estreia. E, desde aí, a sua eficácia genial repete o sortilégio a cada nova projeção: o espetador é levado à máxima potência do ver (e do ouvir) para poder crer. Já nem são necessários efeitos especiais como no “Vampiro”, um mero abrir de olhos torna-se o mais espetacular gesto cinematográfico. E se é certo que nem toda a gente tem a fé de Dreyer, a verdade é que toda a gente conhece com certeza o desejo que “A palavra” realiza. Por isso este filme é tão duro para os ateus e agnósticos que acreditam piamente no cinema.



Título original: "Ordet"
Data de estreia: 1955
Realização: Carl Theodor Dreyer (1889-1968)
Direção de fotografia: Henning Bendtsen
Interpretação: Henrik Malberg, Emil Hass Christensen, Birgitte Federspiel, Preben Lerdorff Rye

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