"GERTRUD"
No filme “A palavra” (1955), o único movimento de câmara que não é primariamente justificado pela necessidade de registar a ação das personagens é aquele que rodeia o louco Johannes e a sua sobrinha enquanto esta manifesta a crença infantil na possibilidade da ressurreição. É um movimento que se justifica pelo valor semântico que ele próprio possui enquanto movimento, valor esse que se torna explícito com a entrada em campo do grande relógio de parede da sala dos Borgen (nesse momento, a câmara recupera a fixidez). Pela maneira como o relógio é utilizado na inesquecível cena da ressurreição, todo o espetador saberá decifrar o seu cândido significado simbólico. No entanto, se seguirmos o fio de Ariadne que esse elemento cénico providencia ao longo de toda a obra de Dreyer, chegaremos com toda a certeza à conclusão do filme “Amo e senhor” (1925), quando se faz equivaler o movimento do pêndulo de um relógio à injunção “Honra a tua esposa!” Fica assim mais complexo e completo o entendimento de “A palavra”.
Se Dreyer teve mais de vinte anos para ponderar a representabilidade cinematográfica de um milagre (já que assistiu pela primeira vez em 1932 a uma representação do texto teatral que deu origem a “A palavra”), pode dizer-se que o grande labor da sua vida foi a reflexão sobre o modo justo de filmar a Mulher. Essa inquietação é claramente manifestada em “Mikaël” (1924), mas a abordagem do autor dinamarquês prima por se afastar das questões eróticas com que se debatem as personagens dessa obra: ele não pretende filmar o seu desejo heterossexual, mas a moralidade que o feminino lhe solicita.
Dreyer não discorre sobre o direito da mulher a aceder às dimensões da vida social que o patriarcado sempre reservou para o homem (profissão, poder, etc.). Pelo contrário, o que lhe interessa é filmar um macho a realizar tarefas tradicionalmente femininas (“Amo e senhor”), o que lhe interessa é revelar a alternativa utópica que pulsa na cultura miticamente associada à mulher. A cronologia da obra confirma: se, em “A paixão de Joana d’Arc” (1928), a heroína epónima se veste como um rapaz e age em nome de valores político-teológicos, a Anne do filme-charneira “Dia de cólera” (1943) só se assume como bruxa porque a falta de solidariedade do homem amado se lhe afigura equivalente ao ritual de tortura usado pelos poderosos da religião. Ora, em “Gertrud” (1964), Dreyer torna-se curto e grosso: o Assunto é o Amor.
Não há, contudo, filme menos delicodoce do que “Gertrud”: o seu enredo sentimental é tratado com a implacabilidade que rege a construção do monumento sagrado. Aliás, se os personagens falassem sobre deus em vez de argumentarem em torno do amor, talvez o filme tivesse sido recebido com menos embaraço aquando da sua estreia. E também não há título mais paradoxal. Pois ele revela o movimento intolerável que faz o amor regressar à condição de mero sonho e assim leva quem aspirou à realidade frontal e inteira do olhar de outrem a já só poder olhar para dentro de si mesmo. A solidão de Gertrud é a de quem teve a loucura de acreditar na derrota da irremediável solidão da alma.
Os filmes de Dreyer são variações femininas do martírio de Cristo (deduz-se a obra toda das “Páginas do livro de Satanás”, sua segunda realização, estreada em 1921). Mesmo o pintor que protagoniza “Mikaël” é um homossexual… É claro que, num filme como “Gertrud”, que adota como contexto um quotidiano sem grandes sobressaltos, a potência visceral desse martírio só se manifesta nas entrelinhas do verniz, num pesadelo descrito pela protagonista, numa tapeçaria que inesperadamente o figura. Mas a verdade é que nunca foi a dimensão física da Paixão crística que esteve em causa na filmografia de Dreyer. O que temerosamente tortura as suas mulheres é a falta de fé que os homens nelas depositam: Gertrud não é um mero reflexo especular da palavra do poeta lírico Gabriel Lidman, a conceção de amor deste é que em tempos se revelou demasiado medíocre perante a entrega afetiva radical que ela representava.
Num mundo que perdeu a robustez dos seus elos espirituais, a única (e imensa) arma que a mulher possui é a faculdade de se retirar. No entanto, ao contrário da Ida de “Amo e senhor” (ou da Nora da “Casa de bonecas” de Ibsen), Gertrud não abandona um lar, mas sim o mundo. E talvez seja o facto de ela não regressar que tenha levado o cineasta a acusar a sua personagem de intolerância. Haveria um vestígio de virilidade no seu desinteresse pelo perdão? Afinal, a benevolência disponível, maleável e alegre da Inger de “A palavra” preparou-lhe um regresso do próprio além-vida…
Dreyer não discorre sobre o direito da mulher a aceder às dimensões da vida social que o patriarcado sempre reservou para o homem (profissão, poder, etc.). Pelo contrário, o que lhe interessa é filmar um macho a realizar tarefas tradicionalmente femininas (“Amo e senhor”), o que lhe interessa é revelar a alternativa utópica que pulsa na cultura miticamente associada à mulher. A cronologia da obra confirma: se, em “A paixão de Joana d’Arc” (1928), a heroína epónima se veste como um rapaz e age em nome de valores político-teológicos, a Anne do filme-charneira “Dia de cólera” (1943) só se assume como bruxa porque a falta de solidariedade do homem amado se lhe afigura equivalente ao ritual de tortura usado pelos poderosos da religião. Ora, em “Gertrud” (1964), Dreyer torna-se curto e grosso: o Assunto é o Amor.
Não há, contudo, filme menos delicodoce do que “Gertrud”: o seu enredo sentimental é tratado com a implacabilidade que rege a construção do monumento sagrado. Aliás, se os personagens falassem sobre deus em vez de argumentarem em torno do amor, talvez o filme tivesse sido recebido com menos embaraço aquando da sua estreia. E também não há título mais paradoxal. Pois ele revela o movimento intolerável que faz o amor regressar à condição de mero sonho e assim leva quem aspirou à realidade frontal e inteira do olhar de outrem a já só poder olhar para dentro de si mesmo. A solidão de Gertrud é a de quem teve a loucura de acreditar na derrota da irremediável solidão da alma.
Os filmes de Dreyer são variações femininas do martírio de Cristo (deduz-se a obra toda das “Páginas do livro de Satanás”, sua segunda realização, estreada em 1921). Mesmo o pintor que protagoniza “Mikaël” é um homossexual… É claro que, num filme como “Gertrud”, que adota como contexto um quotidiano sem grandes sobressaltos, a potência visceral desse martírio só se manifesta nas entrelinhas do verniz, num pesadelo descrito pela protagonista, numa tapeçaria que inesperadamente o figura. Mas a verdade é que nunca foi a dimensão física da Paixão crística que esteve em causa na filmografia de Dreyer. O que temerosamente tortura as suas mulheres é a falta de fé que os homens nelas depositam: Gertrud não é um mero reflexo especular da palavra do poeta lírico Gabriel Lidman, a conceção de amor deste é que em tempos se revelou demasiado medíocre perante a entrega afetiva radical que ela representava.
Num mundo que perdeu a robustez dos seus elos espirituais, a única (e imensa) arma que a mulher possui é a faculdade de se retirar. No entanto, ao contrário da Ida de “Amo e senhor” (ou da Nora da “Casa de bonecas” de Ibsen), Gertrud não abandona um lar, mas sim o mundo. E talvez seja o facto de ela não regressar que tenha levado o cineasta a acusar a sua personagem de intolerância. Haveria um vestígio de virilidade no seu desinteresse pelo perdão? Afinal, a benevolência disponível, maleável e alegre da Inger de “A palavra” preparou-lhe um regresso do próprio além-vida…
A sinceridade do discurso de “Gertrud” obriga a que façamos uma distinção entre a conceção de trabalho que as suas personagens masculinas defendem (uma ação dissociada da profundidade afetiva) e o trabalho do próprio Dreyer, o seu cinema. Vale a pena arriscar a hipótese de que, para conseguir voltar a dar à palavra uma densidade semelhante à que tinha sido atingida na mudez de “A paixão de Joana d’Arc”, o realizador tenha sentido a necessidade de reduzir uma dimensão tão básica quanto o som ao audiovisual na sua plena modernidade: o movimento dos intérpretes. É uma espécie de inversão estética que coloca os espetador perante um cinema escultórico, um cinema que lhe permite conhecer a fala das estátuas, esses corpos tocados pela pétrea melancolia de quem já não se deixa enganar pela superficialidade da vida (ou seja, de quem pensa).
Vale também a pena apostar que, assim como o tribunal de “A paixão de Joana d’Arc” é a verdadeira fogueira antes da fogueira literal (leitura de Regina Guimarães), e como a prostração sentida de “A Palavra” faz com que todo o filme descambe em funeral avant la lettre, também o eremitério ascético a que Gertrud se destina na velhice é a dinâmica de pensamento que organiza todo o olhar de Dreyer sobre o mundo do seu último filme. A maneira como o espelho de Gertrud é enquadrado, a sua inequívoca separação do fausto decorativo típico de uma classe abastada para efeitos de uma concentração semântica, de uma reflexão espiritual, faz dele um objeto tão grave quanto o banquinho pobre que está ao lado da porta com que o filme se encerra. A maneira singela como a exposição fotográfica é tratada, mudando o sentido simbólico a atribuir à luz, desde a manifestação da volúpia nos dois flashbacks até à sabedoria da solidão do flashforward, revela um autor manejando técnicas com a eficácia de quem só precisa do menos para dizer o mais. A própria sistematização radical de uma das suas assinaturas de mise en scène (as personagens a dialogarem sem olharem umas para as outras) confirma o poder de irradiação da mais simples das ideias. O realizador terá pretendido trazer para o cinema a economia clássica de um Racine ou de um Thorvaldsen - saiu-lhe a modernidade pela culatra.
Assim como, no fim da vida, Gertrud cozinha o seu próprio pão e remenda a sua própria roupa, aproximando-se da noção de trabalho humilde-e-útil que harmoniza “A palavra”, Dreyer parece ter concebido o seu último filme como um monumento manuscrito numa folha de papel. Pois é difícil dedicar toda uma vida a investigar a liberdade feminina sem de algum modo ser por ela mudado.
Vale também a pena apostar que, assim como o tribunal de “A paixão de Joana d’Arc” é a verdadeira fogueira antes da fogueira literal (leitura de Regina Guimarães), e como a prostração sentida de “A Palavra” faz com que todo o filme descambe em funeral avant la lettre, também o eremitério ascético a que Gertrud se destina na velhice é a dinâmica de pensamento que organiza todo o olhar de Dreyer sobre o mundo do seu último filme. A maneira como o espelho de Gertrud é enquadrado, a sua inequívoca separação do fausto decorativo típico de uma classe abastada para efeitos de uma concentração semântica, de uma reflexão espiritual, faz dele um objeto tão grave quanto o banquinho pobre que está ao lado da porta com que o filme se encerra. A maneira singela como a exposição fotográfica é tratada, mudando o sentido simbólico a atribuir à luz, desde a manifestação da volúpia nos dois flashbacks até à sabedoria da solidão do flashforward, revela um autor manejando técnicas com a eficácia de quem só precisa do menos para dizer o mais. A própria sistematização radical de uma das suas assinaturas de mise en scène (as personagens a dialogarem sem olharem umas para as outras) confirma o poder de irradiação da mais simples das ideias. O realizador terá pretendido trazer para o cinema a economia clássica de um Racine ou de um Thorvaldsen - saiu-lhe a modernidade pela culatra.
Assim como, no fim da vida, Gertrud cozinha o seu próprio pão e remenda a sua própria roupa, aproximando-se da noção de trabalho humilde-e-útil que harmoniza “A palavra”, Dreyer parece ter concebido o seu último filme como um monumento manuscrito numa folha de papel. Pois é difícil dedicar toda uma vida a investigar a liberdade feminina sem de algum modo ser por ela mudado.
Título original: "Gertrud"
Data de estreia: 1964
Realização: Carl Theodor Dreyer (1889-1968)
Direção de fotografia: Henning Bendtsen
Interpretação: Nina Pens Rode, Bendt Rothe, Ebbe Rode, Baard Owe
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