"HARD LUCK"

Buster Keaton foi um homem bastante simples. Não tinha as ilusões políticas de Charles Chaplin, nem a sofisticação cultural de Jacques Tati. Se sempre quis ser muito rico, nunca foi hábil o suficiente para conseguir permanecer em tal estado. Gostava imenso da companhia sensual das mulheres, mas tinha pinta daquilo a que os americanos chamam “a guy’s guy”. Em relação ao futuro dos filhos, desejou apenas que eles não fossem mimados. Passava grande parte do seu tempo a fazer desporto e a pregar partidas aos amigos e colegas. E alimentou uma única vocação: fazer rir. No entanto, dizia que a vida era demasiado séria para a farsa, para aquele tipo de comédia que propõe uma situação baseada em equívocos superficiais.
Se é certo que esta ética só atingiu pleno desenvolvimento quando Keaton começou a realizar longas-metragens, a verdade é que, em “Hard luck”, bastou-lhe seguir o génio da comédia para perceber o quanto o desejo de suicídio é uma forma de doce embriaguez. E para perceber também que, em bom rigor, ninguém morre quando quer – a vida, com todo o seu esplendor de Acaso, tem sempre a última palavra. E perceber ainda que, quando fracassa um plano autodestrutivo, o candidato ao suicídio recupera de imediato todo o instinto de sobrevivência. Sim, a sabedoria sem idade da comédia é uma forma de lucidez coletiva. Keaton era um veículo experimentado e intuitivo de tudo isso que de certo modo o ultrapassava, mas note-se quão inovadora e precisa é uma criação pessoal como o gag dos faróis, proposta intrinsecamente fílmica na medida em que se baseia na variação da inteligibilidade fotográfica provocada pelo movimento da luz.
Pode conceber-se a segunda parte de "Hard luck" como uma espécie de delírio provocado pela ebriedade. Há alguns argumentos a favor de tal hipótese: o teor manifestamente mais incongruente do enredo, o clímax conclusivo baseado num gag irreal, a encenação recorrente de sonhos ao longo de toda a obra de Keaton. E há também vantagens interpretativas em ler o filme assim. Desde logo, é só na sua segunda metade que os motivos bastante simples do amor e do trabalho adquirem intensidade emocional suficiente para que a sua carência justifique a vontade de suicídio.
Para além disso, o acumular de peripécias aparentemente heterogéneas oferece um crescendo semântico deveras esclarecedor. Entre o episódio da pesca, no qual Pamplinas se mostra conhecedor da lei natural de sobrevivência do mais forte, e a aparição do bandido possante, instala-se a transferência onírica do perigo de uma caçada exótica para uma mera cena de country club. A brincar, a brincar, percebe-se que a estrutura singela a que todos os filmes de Keaton se resumem (dois homens a competirem por uma mulher) tem uma leitura mais social do que biológica.
É só numa China de conceção pueril que o palhaço consegue, por fim, resolver a sua vida. Ao fim de alguns copos de experiência, toda a gente fica a saber onde se situa esse além de perfeição. Parece, aliás, que as pessoas se riram muitíssimo perante as imagens de pura liberdade que rematam a “Má sorte”. Ora, isso é um dado extremamente… engraçado.



Data de estreia: 1921
Realização: Edward F. Cline & Buster Keaton (1895-1966)
Interpretação: Buster Keaton,Virginia Fox, Joe Roberts

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