"SHERLOCK JR."

No final do filme “The goat” (1921), Pamplinas leva a sua rapariga até a uma loja na qual se pode ler a seguinte informação: “Hollywood Furniture: You provide the bride, we provide the home”. Sendo Buster Keaton tão jovem quanto a Meca do Cinema, o homem e o lugar ter-se-ão encontrado na plena forma de uma euforia sem sombras. O lar que o palhaço foi oferecendo ao imaginário dos seus espetadores tinha a pura experimentação por arquiteto: casa-desenho-infantil em “One week”, casa-laboratório-de-engenhocas em “The scarecrow”, casa-comboio-elétrico em “The electric house”, casa-do-jogo-da-apanhada em “Our hospitality”, culminando este percurso no lirismo de “The Navigator” (1924), onde um casal tem de reinventar todo o quotidiano num barco à deriva. Ora, o autor que, em “Steamboat Bill, Jr.” (1928), faz desabar todas as casas de uma cidade com a fúria de um tufão, talvez já não seja exatamente o mesmo homem...
“Sherlock Jr.” foi realizado a meio deste percurso e precisamente defende que o cinema é uma arte onírica, uma arte na qual as leis do real são submetidas a uma variação anárquica. O projecionista injustiçado torna-se infalível detetive no ecrã. Mais importante, contudo, que este mecanismo de compensação algo primário, é a diferença entre a pobreza do complô que o rival de Pamplinas engendra na chamada vida real e a catadupa de inesgotáveis milagres que protegem o personagem de cinema. Se isto é uma paródia da facilidade com que a existência se resolve num ecrã, a verdade é que podemos supor que todos os filmes de Buster Keaton são sonhos onde tais milagres salvadores produzem uma espécie de paradoxal efeito de distanciação (“isto é cinema, isto é a liberdade do cinema!”) e onde os frequentes finais Deus ex machina equivalem a despertares de pesadelos. Muitas das suas propostas encontram processos de coerência que são bem mais oníricos do que narrativos (o motivo da “falta de fundo” em “The balloonatic” ou o motivo da circularidade em “The cameraman”) e as curtas-metragens têm de ser lidas com o mesmo espírito de quem decifra um sonho – se assim não for, elas podem parecer Rossios gratuitamente metidos em Betesgas. Em certa medida, o cinema de Buster Keaton apresenta-se como uma versão rigorosa e radical do que poderia ter sido o ideário de Hollywood.
Com grande probabilidade, a chave de leitura de “Sherlock Jr.” pode ser encontrada na cena final. Sendo Pamplinas demasiado tímido para saber conduzir os processos de cortejamento, é o cinema que lhe ensina todos os gestos necessários a tal sucesso. No entanto, quando no ecrã que ele imita se dá um salto temporal (um salto de montagem) e se mostra que o futuro de um namoro é a responsabilidade de uma prole, Pamplinas fica desconcertado pois, apesar de ser aprendiz de detetive finório, fora absolutamente incapaz de prever isso na sua paixão. Maneira simples de, em plena manhã da história do cinema, vaticinar que este haveria de funcionar muito melhor como trailer do que como spoiler do amor. Profecia que se cumpriu: pelo menos naquele seu período dito de ouro (pobre metal de costas largas…), de que falaram realmente os filmes, da magia do enlace ou da resistência da relação?
Fica assim justificada a sequência em que Pamplinas, quando está a sonhar, entra dentro do ecrã do filme onde projeta a sua própria situação e começa por experimentar uma inusitada peripécia burlesca: age de acordo com cada cenário em que se encontra, mas essa ação prossegue num cenário completamente diferente, resultante de um corte abrupto de montagem (sem que esse corte afete a permanência do corpo de Pamplinas). Exatamente como um par demora a reagir ao facto de se ter tornado uma família, Pamplinas tenta agir em continuidade num exercício de montagem de rutura, sequência que, não só é hilariante, como mantém todo o seu ar vanguardista, mesmo tendo decorrido entretanto um século de cinema. Prerrogativas de uma atitude crítica
De qualquer modo, este momento antológico não se relaciona apenas com o discurso quase impercetível do filme que o abriga, mas pode também ser lido como uma alegoria visual de um aspeto decisivo da situação do palhaço burlesco. Alude-se ao facto de o palhaço, quando chega a um contexto novo, insistir em comportar-se de acordo com um contexto anterior – durante alguns instantes… Por exemplo, quando Pamplinas faz mergulho submarino para reparar o barco de “The Navigator”, ele coloca no fundo do oceano um letreiro onde se lê: “Danger: Men at work”, algo que, obviamente, não é requerido por esse novo contexto. E logo depois, quando regressa à superfície, tenta sem sucesso caminhar com o pesadíssimo fato que usara no mergulho.
É certo que o “contexto de referência” é sempre o da normalidade. O mesmo acontece com Charlot – chegue onde chegar, o palhaço tenta sempre reunir as condições para cumprir aquilo que supostamente toda a gente deve cumprir. A sua inépcia é que é suficientemente rebelde para conseguir revelar a fragilidade dos valores ditos normais. Mas a dinâmica geral do palhaço burlesco exprime-se em grande medida nesse desfile acelerado de contextos aos quais ele se tenta desesperadamente adaptar após um primeiro instante, hilariante, de perplexidade. Deleuze falava de “gagues-trajetórias” a propósito de certos encadeamentos de ações mirabolantes nos filmes de Keaton. A velocidade desses gagues é, contudo, tal, que quase não nos deixa apreciar a evidência da perplexidade. Já o polícia de “The cameraman”, como, sempre que se confronta com os gestos destrambelhados de Pamplinas, desconhece os contextos narrativos que justificam esses gestos, não encontra melhor exercício de policiamento do que a tentativa de enviar o palhaço para o manicómio… Que grande elogio para este ator-realizador que vislumbrou as possibilidades disruptivas da montagem cinematográfica!



Data de estreia: 1924
Realização: Buster Keaton (1895-1966)
Interpretação: Buster Keaton, Kathryn McGuire, Ward Crane, Joe Keaton

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