"PEIXE LUA"

"E se eu me quiser apaixonar por um crocodilo?"
Federico García Lorca


Quando, na derradeira sequência de "O bobo" (1987), o protagonista da obra-prima de José Álvaro Morais acusa a sua companheira de ter uma excessiva solidez de convicções, a câmara faz um movimento de interrogação ascendente para enquadrar o sino de uma igreja a tocar... O realizador parece menos preocupado com o teor específico do pensamento cristão do que com o seu papel hegemónico na definição cultural da Europa. O filme-ensaio “Zéfiro” (1993) propõe uma teoria, baseada na pesquisa do arqueólogo Cláudio Torres, que defende que o sucesso histórico do monoteísmo cristão foi inseparável da estratégia de fortalecimento do poder do imperador romano, no momento em que este começava a ser popularmente entendido como falível e mutável. E se, em “O bobo”, Morais ainda filma a fundação da nação lusitana como quem muito subtilmente discute o seu direito a ser mito, “Zéfiro” é um filme muito mais claro do ponto de vista crítico: a Reconquista Cristã, o passo seguinte da história portuguesa, equivaleu à imposição violenta de uma mundividência à civilização do sul da Península Ibérica, uma civilização no seio da qual conseguiam previamente conviver diversas fés num regime de razoável tolerância mútua. A perseguição policial contemporânea será, aliás, uma espécie de herança longínqua de todo esse espírito destruidor do diverso.

Morais será o tipo de criador que, quando pretende utilizar o nome de um deus como título de uma das suas obras, escolhe o nome “Zéfiro”, um deus do tempo em que eles eram muitos, variados, relativos. Na sua segunda longa-metragem de ficção, o arrebatador “Peixe Lua”, o autor traça um sugestivo panorama da sobrevivência do cristianismo no Portugal do fim do século XX. Trata-se de uma sobrevivência tão decorativa quanto perversa. Decorativa, porque a tradição batismal baseada em nomes de anjos, santos ou conceções imaculadas, nada pode já contra a força com que a sexualidade se manifesta nas vidas de um conjunto de personagens que, pelo menos na juventude, conseguiram efetivamente experimentar um pouco da embriaguez da liberdade. Perversa, porque a grande figura do deseducador dessas personagens, aquele que as tenta desviar de um ideário de prudência, modéstia, pudor, etc., tem de estender a sua provocação até aos domínios do travestismo. A extraordinária figura do tio Nini saber-se-á com toda a certeza condenada a ser vencida por novas formas de ordem, mas está também consciente de exercer um fascínio basilar sobre aqueles que não têm a sua duradoura e burlesca rebeldia: dos sobrinhos aos criados, todos no fundo gostariam de pertencer ao rebanho da ovelha negra da grande família feudal (ainda que uma ovelha negra se defina precisamente pela impossibilidade de rebanho).

Duas curiosidades cinéfilas: Francisco (Paco) Rabal, o ator que assume o papel de tio Nini, já em 1961 lendariamente desviara a “Viridiana” de Buñuel dos seus sonhos cristãos; por outro lado, José Álvaro Morais foi buscar o motivo do travestimo a uma brincadeira que o cineasta Luchino Visconti costumava fazer com os seus sobrinhos. E, se o assunto é a cinefilia, não será descabido defender que o autor de “Peixe Lua” talvez fosse mais sensível à herança caída do céu do tio Méliès do que ao dote indiscutível dos papás Lumière. Pois, a despeito da justeza do seu realismo fotográfico, o sul que ele propõe como cenário para as aventuras sentimentais dos sobrinhos do tio Nini é um exercício de estilização que não anda assim tão longe como isso da teatralização naïf da Idade Média em “O bobo”. Dito de outro modo, neste filme Morais propõe um imaginário, o que, se por um lado exige uma catadupa de convenções facilmente reconhecíveis, por outro permite surpreendentes liberdades: entre uma poética da carne exposta, literal e figuradamente, e o atrevimento de desrespeitar o patriotismo (o filme-viagem decorre no Sul Peninsular, um país na aparência mais homogéneo do que qualquer Portugal protegido do vizinho inimigo pelas suas fronteiras), o espetador é inundado com todo o júbilo que decorre do movimento – a dança, a tourada, a esgrima, a equitação, os dedos no teclado do piano, a corrida, sobretudo a corrida… Não há, em “Peixe Lua”, separação entre uma verosimilhança razoável e aquilo que pode ser liricamente persuasivo numa proposta de romanesco.

É nesta geografia mental que tende para a mestiçagem, para a dificuldade em classificar, que se evidencia a questão da bissexualidade de Gabriel, o protagonista. Apesar de socialmente inferior aos três sobrinhos do tio Nini, Gabriel foi um elemento-chave no despertar erótico de todos eles. Sobretudo no que concerne a Maria João e a Zé Maria. Esse intenso passado comum impõe-lhes um peso sobremaneira desconfortável, quase paralisador. Na primeira metade do filme, o espetador assiste à hesitação de Maria João entre o juízo de casar com um homem de posses e o laço algo indefinível que a prende de forma violenta ao companheiro de juventude (logo na sequência de abertura, esse dilema revela-se na pungência de um corpo-a-corpo). Conforme se vai tornando claro para toda a gente que a insubordinação da rapariga de boas famílias será inconsequente, Gabriel vai subtilmente regressando à esfera sentimental de Zé Maria, o irmão homossexual exilado em Espanha. Se o João de “O bobo” tivera de morrer para que o par formado por Francisco e Rita encontrasse uma perspetiva de futuro, o casamento da João de “Peixe Lua” tem o mesmo efeito abrupto de desmantelamento de um triângulo afetivo. Casar, afinal, também é morrer um pouco…

É claro que Gabriel tem uma virilidade suficientemente expressiva para não conseguir aceitar de modo pacífico o relacionamento com Zé Maria. Vê-se isso na reação colérica perante o prostituto cigano com quem tem sexo, e sobretudo na recordação reiterada de quando os dois jovens amigos-amantes ensaiavam um quadro da peça de teatro “O público” de Federico García Lorca. Sempre que Zé Maria, interpretando a Figura de Guizos, coloca a hipótese de se tornar um peixe-lua, nome híbrido que aponta em simultâneo para a água e para o céu, a Figura de Parras de Gabriel reage com a promessa de se metamorfosear numa faca, objeto que condensa em si toda a raiva da condição homossexual masculina. Ora, é precisamente porque o cristianismo se encontra enfraquecido (afinal, o encenador da provocadora peça de teatro era o padre frequentador da família Calheiros…), que a noção de macho já perdeu a sua pureza totalitária. Ser homem é agora poder ser muitas outras coisas também. No seu texto, Lorca perguntava precisamente se não será preciso ultrapassar o modelo de amor único e normativo do “Romeu e Julieta” de Shakespeare, para que os espetadores de teatro, que são profundamente diversos, possam de facto vibrar com o supremo mito lírico... Assim, no fim do filme, Zé Maria e Gabriel jogam o mesmo jogo da cena conclusiva de “O bobo”: tornaram-se um par que só provavelmente é impossível, um par que integrou a inevitabilidade do desencontro na dinâmica de uma possível estabilidade amorosa. Heterossexuais e homossexuais parecem agora navegar no mesmo barco.

Desde que, no início da carreira, evocou o “Amor de perdição” de Camilo no episódio que dirigiu para a série televisiva “Cantigamente”, José Álvaro Morais foi contando histórias nas quais se mede o índice de verdade que existe nos relacionamentos. Há todo um arco amoroso que se estende desde o casamento forçado por razões políticas entre Dulce e Garcia Bermudes, personagens fictícias de “O bobo”, até à exemplaridade do par criativo formado pelos pintores Vieira da Silva e Árpád Szenes, documentados em “Ma femme chamada Bicho” (outro título que exulta em mestiçagem). “Peixe Lua” é a esse respeito a proposta mais ambivalente da sua obra. Se nele se percebe que a democracia portuguesa da viragem do século se encontra suficientemente madura para abraçar a diferença de um par homossexual, o certo é que se continuam a forjar casamentos por interesse. O capitalismo pujante, sem alternativa, veio afinal colmatar parte da perda de influência ordenadora do cristianismo. Cedo no filme se percebe que Maria João não brinca quando o assunto é dinheiro. Ela irá com toda a certeza fazer um bom casamento. Mesmo Zé Maria, se parece uma personalidade mais livre que os irmãos, a verdade é que se comporta como um grande senhor que paga o que for necessário para obter os seus caros prazeres. E a atriz Paula Guedes regressa ao universo de José Álvaro Morais apenas para representar o papel oposto ao que assumira em “O bobo”: na sequência de “Peixe Lua” que mais se assemelha, do ponto vista formal, à cena conclusiva do filme de 1987 (a câmara acompanha, alternadamente, duas pessoas a caminharem, enquanto conversam à distância uma com a outra), ela incita Gabriel a fazer um negócio moralmente dúbio, apenas porque é um bom negócio. A perda da acima mencionada excessiva solidez de convicções não tem afinal um significado unívoco: ela pode  ser fatal para um sistema moralista como o cristão, mas revela-se essencial para o sucesso do capitalismo.

O tio Nini está a morrer. Terá, com toda a certeza, deixado uma semente de liberdade nos seus sobrinhos, mas o mais certo é que, progressivamente, eles se vão aproximando do realismo apregoado pelo pai. O barco “Zéfiro” deixará de viajar, surrealmente, por terra e regressará ao elemento da sua ortodoxia. O sul é um lugar cheio de brechas, sim, mas nenhum imaginário se substitui à lucidez.

Nota: A epígrafe deste rascunho de sala foi retirada da tradução que José Manuel Mendes, Luís Lima Barreto e Luís Miguel Cintra fizeram do texto “O público” de Federico García Lorca.


Data de estreia: 2000

Realização: José Álvaro Morais (1943-2004)

Interpretação: Beatriz Batarda, Marcello Urgeghe, Ricardo Aibéo, Paco Rabal, Luís Miguel Cintra, Isabel Ruth


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