"PARA SEMPRE MULHER"

 

Numa antologia publicada pela vertente editorial dos Cahiers du Cinéma, o prefaciador Antoine de Baecque afirma que “a política dos autores foi sem dúvida a ideia crítica mais célebre da história do cinema”. Por uma ética de controlo, seria sem dúvida aconselhável investigar se tal celebridade se confirma igualmente em universos meramente paralelos à mitologia dessa revista (pois o cinema não é só ofertas do padrinho Sam e teorias de redutíveis gauleses). No entanto, a julgar pelo borbulhar autoral que se agita pelos oito dias com que se dá a volta a este mundo no primeiro quartel do século XXI (de Alejandro González Iñárritu a Apichatpong Weerasethakul), parece certo que a ideia inchou, mas não desinchou e muito menos passou.
A coisa tem méritos, claro. Ora bastante delicados, como a noção de que, na produção de um filme, alguém terá de assumir o ponto de vista capaz de levar todas os outros trabalhos a se conjugarem numa lógica semântica e numa lógica formal (o que descredibiliza as cerimónias que atribuem prémios a virtuosos do Nutritionists' Studio ou a fases picassianas A.I.C., cravadas em filmes que não as conseguem justificar). Ora salutarmente razoáveis, como a necessidade de hesitar antes de atirar pedras a obras que, à primeira vista, não impõem a mesma convicção que outros títulos realizados por autores que no passado se tinham mostrado pertinentes sem sombra para dúvidas – não será preciso amar esses aparentes passos em falso (como defendia François Truffaut), mas tomá-los em consideração. Muitas vezes, o título falhado até é mais eloquente do que a subtil obra-prima quanto ao verdadeiro teor do discurso de um autor. E, em todo o caso, como os críticos por norma acertam tantas vezes como os relógios parados, manda a humildade que se espere por uma conjugação cósmica que leve uma dessas cebolas a atingir foros de Big Ben, demostrando que “Gertrud” afinal não tinha um ar tão mau quanto isso.
Enfim, a ideia desenvolvida pelos Cahiers du Cinéma na década de cinquenta do século passado fazia depender o conceito de autor de um critério da continuidade (de obsessões temáticas, de tendências de mise en scène) espalhada ao longo de uma carreira criativa. O filme “Para sempre mulher” de Kinuyo Tanaka passou despercebido a esta malta e, ao que parece, também não aqueceu o coração de muita gente no Japão de onde é originário. Mas ele propõe um entendimento de autoria que pode constituir uma suave alternativa à “ideia crítica mais célebre da história do cinema”.
O conto da realizadora tardia é hoje muito conhecido: atriz por demais célebre no seu país, mas tendo, entretanto, amadurecido sem beneficiar dos privilégios literais do fruto (calha a todos…), Tanaka quis experimentar passar também para trás das câmaras no contexto do cinema industrial de ficção. Trata-se apenas do segundo Prometeu de saias a tentar brincar com esse fogo em terras de sol nascente: a primeira que o tinha tentado ficara escaldada com o bullying viril da equipa de rodagem, ao que parece muito pouco zen. Foi um nô difícil de desatar (Kenji Mizoguchi não foi propriamente vago na acusação de que, se inteligência se via na face da performer, esta era mero reflexo de quem de direito a tinha), mas a coisa lá avançou e assim se fez história. Kinuyo Tanaka tornou-se realizadora profissional.
Por um acaso que não lembra aos deuses, os primeiros três filmes dirigidos por si (estreados entre 1953 e 1955), propõem sempre a mesma situação narrativa: alguém se dedica a uma atividade com relativo desapego até ao momento em que se vê obrigado a uma entrega visceral que muda o sentido com que tal atividade era vivida.
Em “Carta de amor”, um homem aceita o emprego fantasma de escrever missivas fiteiras, usadas por japonesas para pedir dinheiro a soldados norte-americanos que tinham sido seus amantes no período de ocupação após a Segunda Guerra Mundial. Mas quando a mulher que ele sempre amara desde a juventude requer ao seu colega escrevinhador um serviço semelhante, o sentido desse género textual muda por completo (desde logo porque fora numa sinceríssima epístola que essa mulher lhe anunciara no passado que se tinha casado com outro homem). O protagonista deixa, portanto, de poder considerar a escrita de cartas de amor como mera profissão.
Em “A lua ascendeu” (filme baseado num argumento de Yasujiro Ozu e carecendo do seu estilo de realização para não se estatelar em comédia romântica), uma rapariga e um rapaz, amigos de longa data, entretêm-se a produzir as condições de mise en scène ideal para que uma irmã dela e um amigo dele se apaixonem. Os encenadores parecem sobretudo divertidos, como se ainda fossem crianças a brincar à gente crescida, até ao momento em que percebem que eles próprios nutrem sentimentos amorosos mútuos. Da leveza, salta-se para as lágrimas genuínas: é doloroso encenar quando isso mexe com as entranhas de quem assumiu tal função.
“Para sempre mulher” foi o primeiro projeto de Tanaka realizadora que não lhe foi cedido por outrem, e para o qual procurou uma argumentista mulher. O filme narra a história de uma figura real, a poetisa Fumiko Nakajō, que acabara de falecer em 1954, aos 31 anos de idade, com cancro da mama. O arco dramatúrgico do biopic transporta-nos desde a ambição vagamente prescindível de uma mulher no que concerne à literatura até à sua fusão visceral com a poesia, quando esta se torna porta-voz do seu corpo mutilado.
No ocidente, sabemos mais sobre sushi do que sobre a vida de Kinuyo Tanaka. O que, em ambos os casos, só faz bem à boca. Enfim, depois de uma relação conhecida com o realizador Hiroshi Shimizu, quando era muito nova, a história oficial é que a grande estrela nipónica não deu em esposa, nem em mãe. Mas não é necessária qualquer semelhança entre o seu percurso pessoal e o da personagem de “Para sempre mulher”, para sentirmos que, pela primeira vez na sua carreira como realizadora, Tanaka está a falar de si mesma, do seu corpo de mulher (e é uma pena que o título português não opte pela palavra “seios” com que o título original esfrega o nosso bom gosto!), do seu corpo desejante. Pela primeira vez na sua corajosa carreira, Kinuyo Tanaka foi plenamente autora. Não em função do prestígio de repetitivos efeitos de assinatura, mas porque a matéria abordada a obrigou a ir ao mais fundo de si mesma. E talvez até tenha sido pela última vez: tendo retomado a realização em 1960, os seus três últimos títulos parecem perseguir uma ambição mais profissional do que propriamente autoral.
Sublinhe-se que, no crescendo dos três primeiros títulos que assinou, Tanaka não pretendeu gerenciar a sua imagem como atriz (como, pelo contrário, fizeram Chaplin, Welles, Tati, Cassavetes ou João César Monteiro). Os seus cameos são, a respeito disso, eloquentes: em “Carta de amor”, ela interpreta uma mulher demasiado velha para, ao contrário da protagonista, poder mudar de vida; em “A lua ascendeu”, num golpe de inspiradíssima ironia, faz de criada que assume, por instantes, o papel de uma das personagens principais, sem que esse gesto de performance lhe diga o menor respeito; e todo este distanciamento é sintetizado quando a estrela surge no secundaríssimo papel de vizinha em “Para sempre mulher”. O êxodo feminista de Kinuyo Tanaka foi por si mesma entendido como uma clara separação de águas entre ser atriz e ser realizadora.
Costuma-se elogiar a obra em análise pelo seu tratamento pioneiro de um tema tabu como o cancro da mama. Francamente, a sua importância vai muito, muito para além disso. A personagem Fumiko é no filme apresentada como sendo egoísta, casmurra e inconveniente. Na verdade, para um olhar ocidental contemporâneo, parece apenas uma pessoa normal. Mas se, como defende Hisayasu Nakagawa, no Japão vigorar de facto uma cultura onde aquilo a que chamamos hipocrisia não tem propriamente valor negativo (é apenas a maneira natural de se viver em sociedade), a irreverência da poetisa torna-se significativa.
Pois a questão é que o corpo de Fumiko foi na verdade delapidado quando, após ter sido rejeitada pelo homem que sempre amou, ela se casou por conveniência (e por influência familiar) com outro indivíduo. Ou seja, muito antes da doença. Duas cenas são claríssimas quanto a isso. A primeira até já adquiriu uma justa celebridade: Fumiko pede à viúva desse seu amor de juventude para tomar banho no mesmo lugar onde por acaso o vira fazer a sua higiene no dia do casamento do seu irmão. Dá-se uma explosão semântica: Fumiko parece conseguir assim celebrar simbolicamente o himeneu que nunca celebrou, não só por causa da lembrança da cerimónia do irmão, mas também pela partilha imaginariamente sensual da mesma água em que o amado se tinha banhado (naquele Lago Tôya, Heráclito não passa de monstro inexistente). E, quando pede à sua rival furtiva, com a qual mantém aliás o mais fraterno relacionamento, para ela confrontar o seu peito sem mamas, não se trata de um momento homoerótico, como certa crítica defende, mas de uma ferocíssima agressão.
Mas não é menos relevante a cena em que, já internada com gravidade no hospital, Fumiko implora por comprimidos para dormir. Se o espetador souber somar dois mais dois, lembrar-se-á da toxicodependência semelhante de que padecia o seu verdadeiro marido, que assim transita de vilão simplista a mais outro metafórico mutilado do embate entre Eros e convenção. Ele também não fora verdadeiramente amado. Algo está tão podre neste império dos signos como noutra Dinamarca qualquer.
Se Tanaka se sai muito bem no género “filme sobre doenças” (algo tão difícil que ainda não se tornou modalidade olímpica), muito melhor se sai no género “filme sobre poetas” (algo tão difícil que ainda não se tornou categoria da Academia Nobel). Já se aludiu à lucidez com que a narrativa demonstra como, para Fumiko, a escrita passa de mera ambição (de gente rural que quer ser lida em Tóquio) para necessidade vital. Nos poemas desta mulher (ou melhor, no que o filme nos faz acreditar sobre esses poemas, inacessíveis em Portugal), são os seios que estão a falar. Ou melhor, o lugar vazio deixado pelos seios. Ou melhor, o sexo.
E isso torna-se ainda mais claro na relação que Fumiko desenvolve com o jornalista Ôtsuki, que vem expressamente da capital do Japão para a visitar já na fase hospitalar. Com o seu oportuno mau-feitio, a poetisa rebate a tendência para a morbidez que caracteriza a imprensa cultural (ela, que sempre reivindicou querer escrever poemas exultantes) e recusa-se a que um poema inédito possa equivaler a um furo jornalístico. Na relação quase erótica que lentamente desenvolve com Ôtsuki, Fumiko reencena a função que o género tanka tinha em tempos passados. Como diz Luísa Freire sobre a era Heian: “Nenhuma relação fazia sentido sem ser acompanhada pela troca de poemas.” O que está aqui em causa não é o retomar da história, claro, mas a devolução do emissor e do recetor de poesia a uma intimidade fundada no corpo, e não na cultura.
Conforme a trama de “Para sempre mulher” evolui, a encenação vai intensificando a sua força lírica (a caminhada à chuva partilhada por Fumiko e Hori, o seu real amado; aquele comboio que, soando como uma caixinha de música, leva Ôtsuki de novo para Tóquio e corta a nossa respiração…). Tudo se encaminha em crescendo para que, no momento em que a poetisa volta a sentir um sucedâneo de esplendor corpóreo, já não seja possível distinguir a maior alegria de uma vida da maior tristeza dessa mesma vida.
A primeira grande discussão entre Fumiko e Ôtsuki é filmada de modo a que, entre os atores e a câmara, se insinuem uma grade de janela e uma enorme faixa oblíqua de luz ladeada por duas tiras de sombra. A restante informação formal da obra permite-nos sintetizar esses dois motivos dissemelhantes num único: a grade feita de luz e trevas. Repare o leitor na cerca de madeira que serve de fundo para a importante conversa à chuva já referida. Repare na alternância quase expressionista de tiras de luz e sombra que acompanha o caminho do Fumiko no hospital, quando ela persegue um cadáver recente até à grade que torna a morgue um lugar interdito. Repare ainda que, na cena que rima com esta no fim do filme, quando os filhos da poetisa se confrontam com a mesma fronteira física da morgue, o gradeamento da entrada desta projeta raios de sombra na luz da parede.
Nada leva a crer que o motivo da penumbra deva aqui ser lido de acordo com uma especificidade cultural japonesa, tal como foi defendido por Jun'ichirō Tanizaki. Talvez o seu sentido seja mais universal, e esse xadrez de afetos contrários constitua uma espécie de Argumento Lírico para a Necessidade de Considerar a Hipótese de Deus. É precisamente após a perseguição patética que Fumiko faz do cadáver a ser levado até à fronteira da morgue (grade de luz e sombra, grade de ferro, portanto) que, ao conversar com Ôtsuki através do gradeamento da cama hospital, a poetisa proclama: “Um Deus em que possamos confiar é coisa que não existe!”. Agnosticismo declarado, sim. Mas porquê tanta alegria? Porquê tanta tristeza? E porque se cruzam por vezes ambas no mesmo excesso quase inefável? Não será tudo isso inútil para explicar a necessidade material de conservar e reproduzir a vida? E o suicídio de Sylvia Plath não terá sido o efeito de um bater de asas de alegria na idade da inocência? Metafísica ou melodrama à parte, as crianças de “Para sempre mulher” insinuam que talvez todos os poetas tenham, um dia, transbordado de alegria, e que a tal não conseguiram sobreviver com a mediocridade da adaptação.


Título original: "Chibusa yo eien nare"
Data de estreia: 1955
Realização: Kinuyo Tanaka (1909-1977)
Interpretação: Yumeji Tsukioka, Ryōji Hayama, Masayuki Mori, Yôko Sugi

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