CAUSAS ESPECIAIS (prefácio)
Este livro não deveria existir (bem, talvez já não seja evidente que a própria humanidade devesse existir, por isso, prossigamos).
Ao longo de toda a minha história de relação com o cinema, sempre que um filme me pareceu ilegível não consegui passar a lê-lo através de uma submissão à leitura feita por outrem. Demorou algum tempo até perceber que, se um filme me parece ilegível, isso se deve apenas ao facto de eu ainda não ter aprendido o bê-á-bá da técnica peculiar de leitura que ele pressupõe (depois da infância, o carrossel da aprendizagem não para quando é preciso voltar aos bancos da escola primária). E demorou muito mais tempo até eu sentir, na pele e por baixo da pele, que só consigo perceber um filme através da minha própria leitura. O que diz o Professor Doutor X, a Kardashian Y de umas Sebentas do Cinema quaisquer, ou a Autoridade Z para a Prevenção e Combate à Ignorância, pode por vezes não parecer mais que um Estábulo para onde um Príncipe está a olhar – cada entendimento é tão único como única é cada vida. Porque escrever, então, um livro onde se partilha leituras de filmes se essas leituras apenas servem adequadamente o seu autor?
De modos diversos, o cinema e a poesia foram os grandes parâmetros da evolução da minha vitalidade. Não joguei à bola, sempre me senti mal a dançar e a partilhar copos, as minhas paixões acabaram sempre em maus saltos de paraquedas (metafórica e até literalmente). Na sala de cinema, contudo, entregava-me por completo àquela alegria pura, indiferente à motivação, que só os corpos jovens conhecem. Quando vi “A doce vida” de Federico Fellini pela primeira vez (algo me diz que deveria ter cerca de vinte anos de idade), entrei no estado de uma euforia que até então desconhecia – não sabia que o cinema podia ser assim e, mais do que isso, não sabia que a vida podia ser assim, tão viva! Só quando, anos mais tarde, revi essa obra-prima felliniana é que me caiu a ficha do pensamento, e compreendi que se tratava de um filme de uma amargura sem par. Ficou, contudo, assim consolidado o algoritmo da minha cinefilia inicial: primeiro passo – avaliar a alegria que do ecrã se extravasa; segundo passo – pensar.
Costumo dizer que, se me apontarem um revólver à cabeça assistido da instrução “ou dizes qual é o teu filme favorito, ou morres!”, acabarei por consentir em “O espírito da colmeia” de Victor Erice. A história de amor, todavia, não difere da mencionada no parágrafo anterior. Muito antes de ter assimilado o delicado discurso político desse título espanhol, já eu estava capturado pelo segredar das duas meninas no silêncio da noite, pelos jogos de sombras à luz da vela, pelo mistério fatal dos cogumelos, pelo impartilhável som que se ouve nos carris do comboio, pela música que sai de um relógio, pela conjugação da flauta de bisel com guitarra e sobretudo pelos olhos da pequena Ana Torrent iluminados pelas cintilações de uma projeção de cinema… O filme tinha um corpo como o de Montgomery Clift e não sei se o teria escolhido para cônjuge se ele não tivesse esse corpo.
Não é preciso sublinhar que o meu erotismo se desenvolveu à sombra dos ecrãs em flor. E julgo que o leitor menos jovem adivinhará que, conforme fui perdendo esse tempo primeiro, conforme foi naturalmente declinando o fulgor da minha sexualidade, também o impacto emocional da superfície dos filmes foi perdendo direitos de precedência sobre o pensamento. Aquilo que me lembro de ter sentido diante dos movimentos de câmara do “Park Row”, bravo título de Samuel Fuller, parece-me hoje tão distante e inverosímil quanto a magia passada a real nos “Cem anos de solidão” de Gabriel García Márquez...
E, embora eu vendesse a minha alma a Hans Beckert para poder voltar a sentir essa puerilidade emocional, reconheço que, em certos aspetos, a minha sensibilidade se aprimorou. Pois sim: o repugnante cinquentão é tão chique que já só engole alegria fílmica se ela lhe parecer imprevisível (“Jules e Jim” de François Truffaut), e não ditatorial (todos esses musicais que, antigamente, ele cantava e dançava de cor!); é tão chique que, como falava André Breton, quer que se torne muito mais fina a teia dessa magia com que muitos fazem, do cinema, um predador (pode, afinal, ser algo tão simples como, em “Nome: Carmen” de Jean-Luc Godard, andar à procura da cor amarela…); é tão chique que descobriu o sumo prazer da lucidez – essa faca que se espeta com violência no coração, mas que alegra o cérebro que assim fica a perceber que o mundo é feito de facas que se espetam com violência, e não de mentiras.
Enfim, os próprios ingredientes sensuais do cinema contemporâneo deste prefácio (que está a ser escrito no verão de 2025) não me ajudam a pender menos para a lucidez do que para a paixão. A violência gráfica é agora o grande obscuro objeto do desejo do espetador. E, por mais que eu desbrave o meu considerável e negríssimo reservatório de kinkiness, não vou por aí. A única coisa que, atualmente, poderei dizer que de algum modo se conforma aos meus desejos, é a proliferação da ficção de temática gay (para um homossexual, ver dois homens a fazer amor num ecrã é de facto diferente de assistir a semelhante despautério entre um homem e uma mulher a quem a fantasia está a prescrever uma cirurgia de redesignação sexual…). Mas, mesmo aí, como o tipo de filme sobre o amor que hoje me faz sonhar já não será tanto “A hora da saudade” de Vincente Minnelli (nem sequer o inacreditável “A idade do ouro” de Luis Buñuel), mas algo como “Uma mulher sob influência” de John Cassavetes, tenho de esperar que as aranhas lgbtqia+ ganhem muito mais experiência de tecelagem – “um bom poema leva anos”…
Penso agora melhor, sinto agora pior. Envelheci. Em todo o caso, o simples facto de me sentir obrigado a estar sempre a considerar um desses polos na relação continuada que mantém com o outro denuncia o quanto, desde a adolescência, o cinema foi para mim uma coisa inteira. Não pacífica, mas inteira. De facto, a semente não ficou para pipoca. E, se já não é mais possível manter a palavra “cinefilia” em lume latente, talvez valha a pena dizer duas ou três coisas sobre a forma peculiar como ela em mim, hoje, se declina (cada cinéfilo é cinéfilo à sua maneira).
Começo por assumir os contornos patológicos que costumam ser universais em tal mania. Se já não tropeço de ternura pelos filmes (ninguém me há de ver a fazer contas ao número de vezes que, pasmado, vi filmes de pasmar), a verdade é que, quando visitei Nova Iorque, pensei que ia visitar o plateau de um filme de Woody Allen. Não é difícil de adivinhar a profunda desilusão que tive com essa cidade demasiado visível (mas, até ao lavar dos cestos, é colheita – Deus é maior que a Maçã!). E se é sem grande frustração (e até com alívio de introvertido) que admito que as festanças da minha vida talvez estivessem destinadas a acontecer apenas em “A doce vida” , já é com bastante mais angústia que me apercebo que, apesar de eu ter tido Natais muito lindos na minha linda infância burguesa, nenhum deles se pôde comparar com a noite de consoada que Ingmar Bergman encenou em “Fanny e Alexandre”. Penso que outros cinéfilos poderiam perguntar, em coro comigo: onde vivemos mais, na rua ou no ecrã?; onde estão, afinal, as nossas mais profundas recordações? Creepy…
A comorbilidade tem, todavia, contornos mais personalizados. Posso dizer que, no meu caso específico, a assunção da cinefilia foi indissociável de uma recusa violenta do cinema comercial que acompanhou a minha infância e a primeira adolescência (com a consequente eleição a bête noire daquele que, nesse tempo, era o cinema por antonomásia – Steven Spielberg, que conseguiu a proeza de reduzir a extraterrestrialidade a um piscar de olho). No entanto, talvez devido ao acaso das leituras a que tive acesso (o discurso crítico dos Cahiers du Cinéma dos anos cinquenta era ainda hegemónico), não fui tanto procurar os autores meus contemporâneos, mas sim aqueles que compunham o Olimpo mítico da (breve) história da sétima arte. Admito poder ser colocado algures no vasto espectro do… da antiguidade da alma, mas a verdade é que me sinto mais humano, mais sem tretas, e sobretudo mais eu, a ver um filme de Charles Chaplin ou Jean Renoir do que a acompanhar as calculadas estranhezas dos estimáveis David Lynch, Maurice Pialat ou Tsai Ming-liang. É certo que pude assistir à estreia de obras-primas como "Tudo bons rapazes", "Querido diário", "Vale Abraão", "JLG por JLG" ou "A comédia de Deus", mas o único autor cuja fase mítica me pareceu estar a acompanhar em tempo real foi Abbas Kiarostami – entre “E a vida continua” e “O vento levar-nos-á”, pude sentir-me tão sortudo como o espetador que assistiu à estreia da “Antígona” de Sófocles ou o leitor que abriu a primeira edição de “Dom Quixote de la Mancha”. Acrescente-se a isto o caruncho da idade anteriormente mencionado, e pode perceber-se que poucos filmes vieram desafiar o cânone construído na minha francajuventude com bocados de cadáveres: vi, muito mais tarde, deslumbres como "A casa é negra" de Forugh Farrokhzad ou "Chuva de julho" de Marlen Khutsiev; mas mesmo esses filmes foram estreados em 1963 e 1966, respetivamente… Spooky…
A minha hipótese de trabalho é apenas esta: não terá sido a arte que decaiu sem apelo nem agravo (“Orlando” de Virginia Woolf encontrou esse tipo de discurso anquilosado mais do que uma vez ao longo dos seus vários séculos de vida), serei apenas eu que deixei de estar in the mood for love… Ainda assim, e em direção oposta ao diagnóstico nada abonatório, a cinefilia pós-adolescência trouxe-me consequências inequivocamente positivas. A primeira delas poderá ser batizada como superação dos Estados Unidos da América. Pois, ao perceber que o cinema era mais do que caças a fantasmas ou regressos ao futuro, percebi que ele não se reduzia à produção de um país (nem sequer à produção de uma cidade específica desse país). Com quarenta anos de atraso, o gesto de “Roma, cidade aberta” de Roberto Rossellini atingiu um jovem adulto de um subúrbio de um país razoavelmente falhado na ponta da Europa. Percebi que havia cinema no meu país, que havia cinema até na cidade que o meu subúrbio orbita (o Porto), e que por vezes era magnífico: seria preciso apenas advertir o público de que qualquer semelhança de tal cinema com nomes, pessoas, factos ou situações hollywoodianas era mera coincidência. Percebi que eu próprio podia fazer cinema, e que ele podia ser deveras extraterrestre, como o mais das vezes todos nos sentimos num universo que conspira a favor de ninguém. Percebi que havia cinema em Espanha, na Geórgia, na Argentina, em África, cinema feito sem dinheiro, feito por militantes, por autodidatas, por loucos… Percebi que o discurso da alternativa passa pela alternativa à forma como ele é produzido e articulado.
A cinefilia levou-me para fora de mim. Se estou consciente de que, no fundo do meu espírito, o que existe é nada mais que uma rapariga e uma locomotiva, tal como reivindicava o “Pamplinas Maquinista”, o cinema levou-me a tomar muitas outras preocupações em consideração – preocupações políticas, históricas, antropológicas, metafísicas… A partir do momento em que construí relações (e não meros one night stands) com alguns filmes e com alguns autores, o pensamento dos outros começou a inquietar-me. Pobres propagandistas, professores, sermoneiros, que, em comparação com os cineastas ou os poetas, só me souberam legar bocejos… Formei, no meu pensamento, uma comunidade atuante e fértil de autores. Se Maria Gabriela Llansol não dialogava com Fernando Pessoa, mas sim com Aossê (que é o resultado do devir do legado do poeta no seu próprio sistema intelectual), é também com uma versão idiossincrática de Andrzej Munk que penso no Holocausto, com um olhar parcial sobre Carl Theodor Dreyer que reflito sobre o cristianismo, com um entendimento sui generis de António Reis e Margarida Cordeiro que avalio a questão da ruralidade. Reconheço, portanto, que, se de algum modo a minha subjetividade filtra os autores como semiquimeras, deles sobra algo com muita força de objetividade, e que esse algo me foi dando mundo, consciência política e inteligência ética.
A cinefilia levou-me até aos outros. Embora reconheça a necessidade da crítica para estabelecer os elos entre a mediocridade dos objetos estéticos e a mediocridade do contexto epocal que eles não conseguem superar, recuso-me a ser mais outro inseto nessa praga de opinadores que, em termos estatísticos, terão razão não mais do que 0.01% das vezes. Nem o Dostoiévski conseguiria inventar personagens com tão alto nível de orgulho infundado. O que me interessa é apenas fazer justiça àqueles autores que, por uma razão ou outra (mais mental ou mais afetiva), julgo compreender.
Não é capricho, isto de fazer justiça aos outros. Pascal Bonitzer dizia que, a partir da modernidade, se tinha dado um desencontro entre a obra de arte (ela, sim, tornada um verdadeiro agente de crítica ao mundo) e o seu destinatário. Na União Soviética ou nos Estados Unidos da América, tentou fazer-se de conta que o problema não existia, incentivando produções fílmicas expurgadas de fator polémico (a nível semântico, claro, mas sobretudo a nível formal). O box office, contudo, é sintoma de tudo menos de compreensão (basta pensar nas muitas pessoas que procuram o “Salò ou os 120 dias de Sodoma” de Pier Paolo Pasolini com a mesma expectativa que devotam a um título pornográfico…). Enquanto cinéfilo, o que tenho para oferecer é atenção. Contra a dureza do marketing, as modas do gosto, os vícios do pensamento, os ditames das ideologias, tento dar a minha mais extremosa atenção àqueles trabalhos que me parecem honestos, relevantes e surpreendentes. Pois é como numa filmagem: assim como basta mudar um pouco a posição da câmara para que o ser enquadrado adquira uma beleza até aí impensável, às vezes basta mudar o ponto de vista sobre uma obra para que a sua relevância se torne, de súbito, evidente. Enganar-me-ei várias vezes, claro. Mas é especificamente isto que tenho para oferecer.
O apogeu da minha vida cinéfila até ao momento não é: quase ter implodido de choro no fim de “Os chapéus de chuva de Cherburgo” de Jacques Demy (explodir não podia, já que só eu estava a ver o filme, na pré-história do solitário formato DVD); quase me ter masturbado enquanto assistia a “Um cântico de amor” de Jean Genet; quase ter morrido de medo ao ver meia dúzia de imagens de “A ninhada” de David Cronenberg. Não, o apogeu da minha vida cinéfila foi ter pegado pelos cornos a obra de um cineasta que me trazia repulsa (Robert Bresson) e ter tentado compreender porque é que toda a gente cujo exigente gosto eu respeitava (amigos, cinéfilos, realizadores, artistas de outras áreas e, claro, críticos e académicos de referência) tinha essa obra na mais alta estima. Vi todos os seus filmes, li muito sobre eles e o seu autor, e sobretudo li e reli aquilo que o autor foi dizendo, por escrito ou em entrevistas. Acabei por descobrir um cineasta notável, único, guerreiro, que, quanto mais não fosse, me ensinou a ter a coragem de filmar o buquê de flores pelo lado menos claramente fotogénico (algo que ele próprio tinha aprendido com um pintor). Me ensinou que, por vezes, pode o assunto tratado em filme ser tão grave que é preciso abandonar o sonho fácil e cobarde da obra-prima (esse sonho que persegue o pobre Francis Ford Coppola). Acabei por tirar o chapéu a Robert Bresson como, em “Deus sabe quanto amei” de Vincente Minnelli, Bama tira o chapéu no funeral de Ginny. E considero isso uma pequena vitória filosófica. Não porque a ideia tenha triunfado sobre a aparência (enfim, acho que já nenhum tonto colocará as coisas desta forma), mas porque a atenção triunfou sobre o preconceito. Volto, no entanto, ao burro frio: não passei a ler o cineasta como os outros o leem; as leituras dos outros foram apenas os catalisadores que me permitiram encontrar my own private Bresson!
O melhor da minha vida cinéfila tem sido un autre. Mesmo quando me comprazo a elencar cineastas cuja alma parece ter sido fecundada no mesmo cúmulo em que a minha foi, esses autores são tão diferentes entre si (Friedrich W. Murnau, Jean Vigo, Sergei Paradjanov, James Ivory, Otar Iosseliani, José Álvaro Morais…) que sou obrigado a inclinar-me mais para a hipótese de uma dizigotia espiritual… Quem sou eu, portanto?
Comecei a escrever sobre filmes ainda na adolescência (com grande prejuízo da paciência de alguns destinatários com bastante mais -filia por mim do que por cinema…). Com vinte e dois anos, publiquei os meus primeiros escritos desse género na revista portuense “A Grande Ilusão”, atividade que me dava uma satisfação de tal modo extática que talvez se deva considerar parafílica. E, durante o período em que animei o blogue “Cabo da boa tormenta” (2006-2013), continuei a infestar o mundo com desvairados bitaites sobre imagens em movimento. Enfim, passando por cima de um breve diário cinéfilo (referente aos anos 2015 a 2018) que se mantém inédito, mas que me parece ter algum interesse, foi só quando, em agosto de 2018, comecei a trabalhar no blogue “Rascunhos de sala… para uma cinemateca imaginária”, que senti ter atingido uma carnadura de pensamento que dava a esse tipo de escritos relevância pública e duradoura. O que quer isto dizer?
Em primeiro lugar, significa que fui assaltado por um respeito obsessivo por aquilo que julgo que ainda hoje responde pelo nome de objetividade. Não é tão raro como deveria ser ouvir criadores contemporâneos a afirmar: “o destinatário da minha obra pode interpretá-la da maneira que quiser”. O desejo de público não deveria levar a tão alto grau de má-fé. Dou sempre o mesmo exemplo: o “Catálogo dos pássaros” de Olivier Messiaen não pode ser objeto de uma leitura ecológica, tal como hoje entendemos essa categoria política. O mesmo se pode afirmar a propósito de “O albatroz” de Charles Baudelaire. Dito de forma curta e grossa: há coisas que estão num filme, há coisas que não estão num filme. E não se pode passar àquela leitura pessoal (a única que interessa) com que introduzi este prefácio, sem antes ter percebido, com o máximo rigor possível, que coisas são essas. Desde que encontrei a leitura de um comentador queer a “O carteirista” de Robert Bresson em que ele discernia o Kama Sutra da sodomia nas poses assumidas pelos atores na célebre sequência que decorre na Gare de Lyon, que fiquei convencido de que o respeito pela objetividade era tudo menos um não-assunto. E, se pensarmos bem, não são muito mais os passinhos lunáticos necessários até chegarmos às hediondas apropriações totalitárias de objetos culturais deixados à tal sorte de “o destinatário da minha obra pode interpretá-la da maneira que quiser” (pobre Kleist, pobre Nietzsche, etc.).
Ao contrário do método puramente intuitivo que persigo quando crio (textos literários ou filmes), quando leio o que os outros criaram, tento rodear-me de uma quantidade generosa de investigação e comentário que outros produziram sobre esses outros. É uma espécie de controlo científico (metáfora um pouco forçada, estou consciente disso…), ou seja, é uma forma de eu garantir que a erudição acumulada sobre determinado objeto impeça que a minha leitura não seja fiel à realidade do objeto lido. Um exemplo muito prático: é hoje do conhecimento comum que, no prólogo da versão não censurada de “A cor da romã” de Sergei Paradjanov, numa das imagens em que o sumo do fruto do título se espalha sobre tecido branco, o derrame acabava por formar a imagem ensanguentada do mapa da Arménia. Sem saber isto, quando o leitor do filme tiver acesso às palavras imediatas com que o seu protagonista, o poeta Sayat-Nova, reivindica ser “aquele cuja vida e alma é feita de tormentos”, poderá ser levado a considerar uma leitura redutoramente lírica. Ora, como, mais tarde, “A lenda da fortaleza de Suram” confirmará sem margem para dúvidas, não há, no pensamento de Paradjanov, uma separação artificial entre dor individual e dor coletiva. O poeta lírico até se poderá tomar por um elegíaco isolado, mas na verdade ele exorciza o sofrimento de todo um povo, de toda a humanidade.
Investigação, erudição acumulada, mas também intertextualidade e as declarações dos próprios criadores quando a elas temos acesso (mesmo se os criadores são muitas vezes criativos naquilo que declaram) – não se trata de instrumentos que devam ser manejados apenas pela Academia (bocejo…). Trata-se de armas de profundo respeito pelo outro, de tentativa de convívio – de cinefilia!
A segunda parte da empresa implica a mobilização das minhas próprias experiências (biográficas e intelectuais) para tentar estabelecer uma leitura consistente dos dados objetivos que me chegam dos filmes. Não se trata de decifrar um sentido que está debaixo de sete palmos de terra (esse tique policial que as escolas tendem a instituir como sinónimo de leitura), mas de propor uma hipótese de organização lógica para o filme na qual se dê um encontro significativo entre objetividade e subjetividade. Se algo se decifra, é apenas a técnica peculiar de leitura que cada filme pressupõe.
Acredito nesta insânia: se o leitor for absolutamente fiel às suas memórias, aos seus pensamentos, sobretudo às suas obsessões, não poderá haver duas leituras iguais de um mesmo objeto estético, mesmo tendo este sido avaliado a partir do maior grau de objetividade que é possível em dado tempo e em dado lugar. Por isso, chamo a estes textos meros “rascunhos de sala”. E por isso os tomo como uma avaliação do meu próprio espírito: não é só o filme que é criticado na leitura que dele fazem; o próprio leitor é medido na relevância, abrangência e novidade do discurso legente que estabelece. "Judge tenderly—of Me…"
Estes textos não são cartas de amor aos filmes. São manifestações de direito ao pensamento por um cidadão que ama o cinema sem se ter de vergar à posição de crítico, académico ou filósofo. São equações de cidadania e alma. São exercícios de uma atenção que deveria ser modalidade olímpica, e tomadas de posição guerreira a favor de alguns conterrâqueos. E se reivindico que penso à minha maneira e à maneira de mais ninguém, sei também que o pensamento tem mais virtualidades pandémicas do que o SARS-CoV-2. Basta não se ser demasiado Pôncio Pilatos na curiosidade pelo mundo. Parece-me que, hoje, o meu sentir e o meu pensar são na prática indestrinçáveis na hora de receber um filme, e isso talvez permita que a lógica que as minhas leituras tentam demonstrar sirva de fator desencadeante da lógica dos outros. O pensamento de cada homem não existe para revelar, para fazer pasmar, mas para inflamar o pensamento dos que lhe dão o flanco. O dominó só é jogo quando produz efeito após efeito. Talvez este livro deva, afinal, existir. Mas insisto: só talvez…
A partir de uma certa altura, o blogue “Rascunhos de sala…” ganhou vontade de ser papel impresso e encadernado. Neste momento, o objeto tem cerca de 140 páginas de formato A5, e cirandou em torno de 42 filmes que se espraiam ao longo de um século a partir do ano 1920. Seria bom se o tamanho pelo menos duplicasse, mas confesso que acalento o sonho de o projeto ocupar a minha restante vida. Por isso escrevo o prefácio nel mezzo del cammin, para garantir que prefácio há, mas ciente de ele poder ficar bastante desatualizado e de que posso ter de enviar o posfácio devidamente corretivo através de uma sessão espírita. A ver vamos.
Os textos pretendem atingir o centro do alvo de um público (seja ele qual for) que cultive o prazer do filme, do pensamento e da PALAVRA.
.jpg)


Comentários
Enviar um comentário