"UM VERÃO DE AMOR"

Inventemos um período na filmografia de Ingmar Bergman e batizemo-lo como pragmática do amor. Suponhamos que tal período começa com “Prisão”, título estreado em 1949 e que se baseou no primeiro argumento original escrito pelo próprio cineasta (anteriormente, Bergman havia sempre partido de material literário prévio). Narra-se aí a possibilidade de se realizar um filme que discuta se o mundo não terá o Diabo como autor, ou seja, estabelece-se uma discreta associação entre a posição criativa de realizador e o problema metafísico por excelência.
Muito pelo contrário, em “Sorrisos de uma noite de verão” (estreia em 1955), obra que conclui este nosso período contrafeito, estamos em pleno reino do teatro, onde os efeitos não enganam ninguém quanto ao seu artifício e se suspira por uma encenadora mulher, que não invente o que não precisa de ser inventado, e se limite a tornar manifestos os pares amorosos que estão em ignorância latente.
Talvez “Monika e o desejo” seja o filme mais importante de toda esta fase, mas “Um verão de amor” não lhe fica atrás em perfeição. É, aliás, um filme num estado de prodigioso equilíbrio, como se caminhasse nas sapatilhas de pontas das bailarinas que lhe compõem o imaginário. Na sequência, perto do seu termo, em que a protagonista Marie conversa com o seu coreógrafo (simbolicamente ataviado como Doutor Coppelius, personagem mítico do ballet clássico que sonhava insuflar vida numa boneca mecânica por si criada), este comporta-se como um bruto: dá a chave rigorosa de leitura do filme (trata-se de mostrar à bailarina a sua explicação psicológica), reivindica não ser afetado pela degradação física dos meros intérpretes e tenta condenar Marie à continuidade frenética da dança, sem quaisquer sonhos de felicidade pessoal. Poderá haver alguma identificação entre Bergman e este personagem, mas, na verdade, ele parece-nos tão ridículo, em termos de máscara, quanto a bailarina. E, em todo o caso, a moral da história segue um caminho totalmente inverso: Marie termina o filme na iminência de um sucesso conjugal.
Ingmar Bergman será uma das estrelas lendárias do cinema dito de autor (inclusive em termos de defesa crítica pelos Cahiers du Cinéma), mas se há nele algo de profundamente sincero e provocador é a sua resistência a uma visão simplista da autoria. Ler o sofrimento da vida como claro efeito de uma Divindade é algo típico de uma mentalidade medieval (“O sétimo selo”). E esse tipo de esquematismo de pensamento (entranhado mesmo em quem aparentemente não se reveja nele) só serve para legitimar intervenções autoritárias na vida privada: nos conselhos que dá a Marie, o coreógrafo está afinal a comportar-se como um Deus ad hoc, como um adulto cínico, como um pai castrador – e é sabido o quanto a biografia do cineasta se pautou pela resistência, talvez até excessiva, a uma figura paterna puritana.
Os filmes do realizador sueco são muitas vezes protagonizados por artistas que tentam perceber, normalmente sem grande sucesso, em que medida podem ser um pouco autores na relação entre a sua vida e o seu peculiar tipo de profissão. A história de Marie é a de uma bailarina profissional que, com cerca de quinze anos de idade, viveu um verão de amor adolescente que terminou em tragédia com a morte acidental do namorado Henrik – episódio que a terá condenado a uma espécie de clausura emocional. O achado narrativo de Bergman reside no facto de aquela morte surgir antes do encantamento da relação passional ter degenerado de forma clara. Bastava os namorados se terem separado logo após o verão e a distância da vista, para dar razão ao povo, ter trazido a distância do coração e Marie não teria ficado traumatizada pela quimera daquela plenitude. Ou brincando agora em tom mais erudito: “Um pouco mais de tempo – e fora a lucidez...”
Embora o filme tenha sido baseado numa memória de Bergman e este tenha procedido com esmero na urdidura de um lirismo contagiante (o texto da voz off é muito belo e parece trabalhado no estilo em que Marie o teria escrito na adolescência), a verdade é que isso não corresponde à visão da vida de um realizador com trinta e dois anos na altura da rodagem do seu filme. Manifestamente incapaz de um lirismo adulto como o que Luis Buñuel, com uma idade semelhante à sua, propôs em “A idade do ouro”, Bergman aceitou afrouxar o seu cunho autoral para conseguir ser justo com aqueles dias lendários que tiveram a perfeição de um colar de pérolas. Mas tudo isto parece quase a deriva provocatória da parte inicial de “Photomaton & Vox” quando, após ter deslumbrado o leitor com o texto “(uma ilha em sketches)”, o poeta Herberto Helder assume “A ilha transacta não é da minha luz.” 
Pois os indícios trágicos que assombram Marie e Henrik não são tanto o piar da águia ou o frio que sempre consegue penetrar no estio nórdico, mas a verdade relacional dos adultos que os rodeiam: pais divorciados, mães ausentes, casais sem amor… É isso que os ameaça de facto. Como já se disse, se Henrik não tivesse morrido, ele e a namorada não tardariam a descobrir alguma forma de mediocridade funda em si mesmos que iria problematizar a relação. No filme que Bergman estreou no ano subsequente (“Mulheres que esperam”), o espetador verá o mesmo par de atores (Maj-Britt Nilsson e Birger Malmsten) a interpretar um casal que só encontra a felicidade conjugal após ter precisamente interiorizado essa irremediável mediocridade.
(Um aparte: em “Mulheres que esperam”, há uma cena de sedução que será das mais belas que alguma vez foi ou será filmada!)
No cinema do autor sueco, os adultos apaixonados são sempre mostrados como ridículos (o advogado de “Sorrisos de uma noite de verão”, o tio Erland do filme em discussão, que acumula ridículo com necrofagia). Todas as relações estáveis estão ameaçadas, nomeadamente pela deriva erótica que torna a fidelidade impossível, assim como pelo facto de homem e mulher terem carreiras profissionais no mundo contemporâneo (algo para o qual não há uma alternativa convincente, como a “Monika” descobrirá para seu grande desgosto…). Se uma relação de alguma forma permanece, isso pode dever-se a um certo cansaço, mas é normalmente o resultado do ciúme – é sempre o sentimento de posse que leva os amantes bergmanianos a amainarem o seu próprio desejo vagabundo pela necessidade de controlarem o desejo do parceiro. Poucas vezes terá sido o cinema tão prosaico, tão pouco iludido, tão pouco lírico, a propósito de semelhantes assuntos. Marie fica parada no tempo porque o seu primeiro amor foi, como o inferno de Rimbaud, apenas uma estação. E isso tornou-a imprópria para o consumo da realidade.
A libertação da Marie adulta dá-se quando ela é obrigada a recordar o verão de amor. Como se o espetador estivesse a acompanhar um rigoroso manual psicanalítico, é-lhe demonstrado que o esquecimento de Henrik por Marie só se dera a um nível consciente e que, na verdade, ele continua a ocupar todos os cantos da dimensão mais profunda do psiquismo da bailarina. Godard dizia que os flashbacks eram a condição sine qua non dos filmes de Bergman (e não um recurso de facilitismo narrativo). Na verdade, o flashback deste filme tem um peso terapêutico. É uma espécie de interpretação do sonho que Marie menciona no início do filme, sonho cujo teor ela já não consegue concretizar, mas que a terá deixado no limiar das lágrimas. Se os profissionais de saúde do universo bergmaniano tendem a ter uma inteligência emocional assaz duvidosa, os sonhos, recordações e encontros imprevisíveis com outros humanos podem ser decisivos para aliviar os nós psíquicos dos seus protagonistas (basta lembrar o pesadelo do marido em “A sede”).
Há um repertório de efeitos, assinaturas do autor, que dão espessura onírica à analepse e suas consequências (desde logo a chegada à ilha onde o episódio ocorrera, treze anos antes, pontuada pela aparição de uma velha que parece ter sido repescada de um pesadelo). Todavia, Bergman encontrou outras maneiras de levar tal água ao seu moinho que são quase endémicas deste filme e não serão repetidas de forma obsessiva ao longo da obra.
É o caso da lindíssima sequência da animação. Repare-se que esta resulta de um desenho que Marie executa sobre a capa de um vinil – ou seja, trata-se animar um desenho a partir de um fundo musical. Ou seja, trata-se de… dançar. E, apesar desse cartoon fazer rir o par de namorados, ele é um puro momento de profecia trágica – estas crianças não vão conseguir escapar! Ele revela o que Marie e Henrik já começam a pressentir, mas ainda não são capazes de pôr em palavras.
Em sentido inverso, quando, no fim, Marie já tomou plenas rédeas do seu consciente e superou a ideia de que a arte é um território que a vida não assalta e que não assalta a vida, o espetador percebe que ela dá um beijo ao seu par do presente apenas pelo pôr-se em pontas. E logo, logo, ela entra para dançar num palco que será com toda a certeza um estúdio que amplia a paisagem da coreografia até esta parecer pertencer ao imaginário de um Dali ou de um Tanguy. As próprias formações de grupos de corpos hesitam entre a mera estética do ballet e uma composição plástica de vago aroma surrealista. O flashback foi o verdadeiro ensaio geral deste espetáculo em que a prima ballerina, antes de entrar em palco, executa o gesto mais autoral, o mais genuinamente artístico, da sua vida – o tal beijo em elipse. Quando é reflexão sobre o amor, o trabalho pode tornar-se adjuvante da relação amorosa.
Já aqui se referiu que, para Ingmar Bergman, o amor é uma questão pragmática, sem ilusões (especialmente líricas). O que Marie percebe, no fim de “Um verão de amor”, é apenas que pode aceitar a relação imperfeita que tem no presente porque a plenitude amorosa fora uma ideia errada que no passado se lhe impusera. Trata-se apenas de um alívio momentâneo, que permite o continuar da vida, mas em nada legitima a esperança da felicidade.
Do ponto de vista formal, o cineasta acusa esta leveza circunstancial com o afastamento do rosto nas sequências de dança filmada. Os diversos movimentos de câmara de aproximação ao semblante de Marie que vão marcando o filme são evidentes inquirições à história dessa parte do corpo – uma história hiperbólica que sugere quarenta e cinco anos de idade numa mulher que apenas tem vinte e oito. O distanciamento visual deste passado somatizado em fisionomia, que se percebe com recato nas encenações de “O lago dos cisnes” (o trabalho de Marie), mostra que Bergman se tornara um autor requintado por comparação com o filme estreado no ano imediatamente anterior, “Rumo à felicidade”, em que o imberbe tentara extrair esse tipo de desanuviamento da música beethoveniana como se esta fosse um dente de mui solene raiz. Aqui estamos já no primor da subtileza, preparando soluções semelhantes, mas cada vez mais eficazes do ponto de vista emocional, no fim de “Morangos silvestres” (afastamento do rosto dos pais) e no fim de “Lágrimas e suspiros” (afastamento do rosto das irmãs).
Ficou célebre o olhar de “Monika” para a câmara, quebrando a quarta parede de inspiração teatral. Mas o trabalho com o campo-contracampo neste filme, na já mencionada cena da conversa de Marie com o coreógrafo, talvez não tenha menos relevância para a história das formas cinematográficas. Ao prolongar a maneira clássica de filmar uma conversa com os reflexos nos espelhos de camarim, Bergman não só simboliza que o verdadeiro espelho de cada humano é o rosto de outro humano, como dá prevalência à colocação lado a lado dos rostos dialogantes sobre a expectável plástica do confronto. O enquadramento sui generis do meio-rosto de Marie, depois dessa troca verbal em que os dois artistas medem o que neles é semelhante e o que neles se contradiz (enquadramento que já aparecera no início do filme), mostra que, como todos nós, ela carece profundamente de uma cara metade. Bergman só lha dará quinze anos mais tarde, mas já além de um mero discurso amoroso – em “A máscara”.

Título original: "Sommarlek"
Data de estreia: 1951
Realização:  Ingmar Bergman (1918-2007)
Direção de fotografia: Gunnar Fischer
Interpretação: Maj-Britt Nilsson, Birger Malmsten, Alf Kjellin, Georg Funkquist, Stig Olin

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