"O MUNDO É UM MANICÓMIO

Não será a flor cómica da pele de “O mundo é um manicómio” que nos vai impedir de levar a sério a caracterização do seu personagem principal enquanto crítico.
Mortimer Brewster é desde logo um crítico da instituição conjugal. Claro que esse discurso modernaço nunca livrou ninguém de efetivamente juntar os seus trapinhos com quem lhe conseguir baralhar o sistema de pensamento – e assim, Mortimer casa-se com Elaine Harper, filha de um reverendo e tudo... O filme acontece enquanto problemática suspensão entre a cerimónia de casamento propriamente dita, ainda que não mostrada, e aquela primeira noite (estávamos na década de quarenta do século passado...) em que homem e mulher se hão de entender para cometerem um dos atos mais eficazes de que existe conhecimento. A brilhante piada do táxi que, com o taxímetro a aumentar os custos da tensão do espetador, fica à espera durante todo o filme para conduzir os pombinhos à alforria da lua-de-mel, estaciona a encenação no rigor clássico das três unidades dramáticas: ação, tempo e até lugar (as cenas que decorrem fora do cenário principal são demasiado acessórias, descartáveis).
Essa suspensão equivale à permanência de uma hesitação crítica algures no espírito do noivo. Mas, como os filmes são sempre generosos com os seus problemáticos heróis, Mortimer vai ser obrigado a confrontar-se com o outro ato mais eficaz de que existe memória, o ato simetricamente oposto ao que ele é suposto levar a cabo. A etimologia românica do seu nome já prevê semelhante trapalhada... O texto dramático de Joseph Kesselring fornece então o material do confronto sob três prismas.
Na figura de Jonathan, um dos irmãos de Mortimer, plasma-se a condenação consensual do homicídio. Curiosamente, esse consenso parece resultar apenas do facto de ele ter a aparência evidente de um criminoso – o seu cúmplice de má vida, um cirurgião plástico chamado Einstein, sem querer reconstruiu-lhe o rosto de modo a ele se parecer com Boris Karloff, famoso intérprete de filmes de terror, ou seja, de modo ele ter um rosto icónico do Mal e de esse rosto não deixar margem para dúvidas sobre a monstruosidade imoral que o move.
Em pleno contraste com o acordo entre ação, intenção e aparência que caracteriza Jonathan, as adoráveis tias Abby e Martha vêm trazer o desconcerto da eutanásia. É tão extrema a bondade que elas exibem em todos os seus comportamentos, que se torna quase impossível de acreditar que já tenham assassinado uma dúzia de velhinhos, apenas porque têm pena da solidão em que eles vivem. A hilaridade provocada pela candura absurda da sua paródia da caridade resulta da interdição judaico-cristã de se associar o gesto de tirar a vida à noção de Bem. Isto não impede que o dr. Einstein, quando se apercebe de que elas não têm menos homicídios do que Jonathan no seu currículo, reivindique que as tias são tão boas quanto o sobrinho, estando a palavra bondade aqui a ser ironicamente utilizada no sentido de eficácia.
Entre um e outro extremo, prevalece ainda a morte como instrumento oficioso da política: o outro irmão de Mortimer, claramente avariado do capacete, julga que é o Presidente Theodore Roosevelt, esse líder estado-unidense que chegou a ganhar o Prémio Nobel da Paz, mas que não esteve isento de polémicas sinistras, como aquelas que lhe permitiram promover a construção do Canal do Panamá.
Não é possível escamotear as insinuações cívicas que atravessam a fita em surdina: a sua rodagem ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando o esplendor letal do nazismo ia começando a ser conhecido, e sobretudo toma como cenário uma pátria onde a proibição da eutanásia convive alegremente com a manutenção da pena de morte. Julgo, contudo, que a obra não apresenta suficiente gravidade para atingir um discurso substancial a esse nível.
Mortimer quer desesperadamente salvar as suas duas tias da condenação criminosa. E leva o espetador consigo nessa demanda que, mais do que propriamente amoral, será crítica de um teatro social que equivale a um policiamento baseado em clichés de avaliação de caráter e de ação (o título original do filme funciona como sinédoque de todos esse clichés). No melhor pano de uma comédia de velhos truques cai a nódoa contagiosa de uma loucura que fica por julgar. Até o Dr. Einstein se safa, porque, a despeito de toda a tagarelice em torno de Boris Karloff, os polícias ignorantes não reconhecem que o personagem está a ser encarnado por Peter Lorre, rosto cinematográfico arquetípico do serial killer…
Ao ser informado, no fim do filme, de que afinal não possui material genético da família Brewster, Mortimer compreende que é capaz de viver a sua pulsão de morte de forma suficientemente saudável para poder levar a cabo todos os passos do impulso erótico. Compreende, também, quase como se fosse um personagem bergmaniano, que o horror humano que precede todo o indivíduo tem de ser provisoriamente esquecido para que esse indivíduo tenha a coragem esperançosa de gerar a sua prole. E só é pena que a censura hollywoodiana não tenha permitido o grito de doida felicidade que ele solta no texto original quando se sente genealogicamente emancipado, “I’m a bastard!”, já que esse palavrão não designa apenas a condição de bastardo, mas também uma normalidade psíquica que se distancia por completo do mito da bondade, tal como as tias o vivem até à mais perversa caricatura.
No fim de contas, o verdadeiro presente de casamento das tias Abby e Martha é semelhante àquele que Charles Dickens oferece a Ebenezer Scrooge no seu conto de Natal: os velhinhos que elas eutanasiam são os fantasmas do futuro solitário do homem que resista à missão de constituir família. Tem cem anos de perdão quem assim oferece tão convincente preliminar ao genuíno anseio do coração: “CHAAAAARGE!”


Título original: "Arsenic and old lace"
Data de estreia: 1944
Realização: Frank Capra (1897-1991)
Interpretação: Cary Grant, Priscilla Lane, Josephine Hull, Jean Adair, Raymond Massey, Peter Lorre, John Alexander

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