"O JOELHO DE CLAIRE"

Os Seis Contos Morais de Éric Rohmer atualizam a problemática cristã da tentação da infidelidade. Um dos elementos mais originais da proposta é o facto de, em todas as narrativas cinematográficas que a compõem, o papel de tentador ser atribuído muito mais à figura de um amigo do que à personagem da potencial amante. Nos primeiros quatro filmes, o protagonista é empurrado para a aventura sensual por um compincha mais atrevido, enquanto a mulher que está na mira dessa aventura quase só ocupa tal posição em virtude de uma série de acasos e coincidências. Ora, em “O joelho de Claire”, penúltimo capítulo da série, o amigo tentador pertence pela primeira vez ao género feminino e é batizado com o nome próprio de Aurora – informação nada despicienda, na medida em que este primeiro projeto hexagonal de Rohmer foi pensado como uma reinterpretação de “Sunrise”, a obra-prima hollywoodiana de Friedrich Murnau. Como remate, “O amor às três da tarde” completa a fusão entre as duas figuras: a mulher que fica a um pelo de se tornar amante é também a amiga que arquiteta a tentação.
Poderemos daqui extrair as mais desvairadas ilações, mas um daqueles exercícios de ortóptica com que se curam os distúrbios da visão binocular das crianças aconselhará uma leitura infinitamente mais singela, a saber: para Rohmer, a tentação parece ser sempre amiga, ou seja, benéfica, essencial para a solidificação do laço amoroso assumido como legítimo. O presente de casamento que Aurora oferece ao seu amigo Jérôme é, portanto, a possibilidade de ele confirmar o desejo de monogamia após ter conseguido não ceder à tentação.
Importa assinalar que o “O joelho de Claire” se destaca entre os seis contos pela ambiguidade profunda da ficção que oferece. Sem realizar o já referido exercício de leitura global, talvez o espetador se sentisse tentado a inserir a personagem Aurora nas coordenadas de um imaginário libertino. No entanto, a ambiguidade rohmeriana não é a uma estratégia de libertação de energia perversa. As linhas por onde se caminha até ao casamento serão um pouco tortas, mas aquilo que nelas se vai escrevendo (por Aurora?, por Deus?, pela cultura assimilada?) tem a certeza das coisas evidentemente luminosas.
Ficaria Rohmer zangado com esta sugestão de uma identidade profunda unificando a variedade de destinos narrados nos seus contos morais? A verdade é que ele sempre preferiu sublinhar esse caráter variado em detrimento da noção demasiado abstrata de igualdade. E assim, outra das originalidades de “O joelho de Claire” é o facto de o filme estar dividido em duas partes distintas, obrigando o seu protagonista a vencer dois episódios de tentação que se revelam bastante divergentes no tom com que se apresentam (ou seja, a quinta grande variação da série moral está ela própria decomposta em duas pequenas variações). Em primeiro lugar, Jérôme tem de escapar da adolescente Laura, que quase só tem a beleza do espírito – um beijo há de permitir-lhes encontrarem o equilíbrio de ternura adequado à castidade do seu relacionamento. Posteriormente, será Claire, pouco mais velha que Laura, mas que praticamente só tem o físico como elemento de ligação com Jérôme, que terá de ser afastada. Desta vez, como o erotismo não encontrou uma válvula de escape na sensualidade da palavra, a libertação terá um teor muito mais violento: ela será provocada pela famigerada carícia no joelho da rapariga, que quase equivale a um gesto de violação.
Estes dois toques parciais conseguem de facto exorcizar a ameaça da plena consumação sexual do desejo. O fetichismo associado a Claire é um elemento previsto logo no primeiro conto, quando o estudante se aproxima d’“A padeira de Monceau” através do pretexto da compra de pastéis. Mas, embora ele tenha em grande medida ditado a celebridade do filme e constitua a imagem mais forte fornecida a um herói rohmeriano para que este entenda que a fidelidade não é um passeio no parque, o beijo dado a Laura não lhe fica atrás em consequências e poder expressivo. Esse beijo parece ter o poder mágico daqueles que rematam os contos de fadas, funcionando contundo no sentido inverso: ele afasta definitivamente os beijadores, fá-los perceber que não têm um destino sensual comum e instaura um elo amical.
Quantos filmes é que o caro espetador já viu sobre a possibilidade de amizade entre homens e mulheres heterossexuais? Pois é… Na encenação dos estranhos mas incessantes gestos de quase-só-carinho trocados entre Jérôme e Aurora (que lembram as carícias assumidas por Jean-Louis e Maud após “a noite” em que transferiram todo o sexo para o verbo…), talvez Rohmer tenha ascendido à categoria de pintor cinematográfico tal como ele próprio a definiu ao falar do trabalho de Nicholas Ray em “Atrás do espelho”: “por um abrandamento ligeiro, por uma aceleração demasiado viva, por um tempo de paragem que talvez não dure mais que uma fração de segundo, conseguiu ornar de eternidade os gestos mais simples”.
Este pudor da tangibilidade entre os seres funciona em plena consonância com a relação estabelecida entre a câmara rohmeriana e o espaço que ela regista. Rohmer aceita tocar o mundo, mas nunca retocá-lo. Se alguma poesia se dá a ver nas suas obras, ela resulta da capacidade do aparelho de filmar para restituir ao espetador a integridade da beleza que o mundo já possa ter. Em certa medida, Rohmer é um anti-Tarkovski: o Criador maiúsculo é tão-somente Deus, nunca o realizador. O francês é tão teimoso na sua modéstia moral (ousando assim não ser um autor de primeira grandeza) que recusa mesmo o recurso à contemplação – talvez a hipertrofia da duração lhe parecesse ter um perverso efeito fabricador, um efeito de alteração insidiosa dos dados do visível… A escolha do Lago de Annecy para cenário de “O joelho de Claire” é, contudo, um exemplo maior da eficácia que a discretíssima maiêutica do cineasta podia obter. Por um lado, os personagens e seus enredos parecem merecer profundamente o espírito daquele lugar e vice-versa. Ao mesmo tempo, a evidência poética das imagens é tão precisa que quase se pode dizer que o Lago de Annecy se tornou uma geografia rohmeriana exatamente como a cidade de Matera é hoje sinónimo do imaginário de Pier Paolo Pasolini.
A atmosfera singular de “O joelho de Claire” resulta ainda do facto de as hipóteses de tentação de infidelidade corresponderem a revisitações da juventude passada. Se Jean-Claude Brialy, intérprete de Jérôme, surge no início da narrativa como o protótipo de uma figura de charme, conforme os adolescentes se vão apoderando do filme, ele parece francamente começar a envelhecer aos olhos dos espetadores contagiados pela energia de um período da vida em que tudo, incluindo o amor, se pauta ainda pela pura possibilidade, pela absoluta indecisão. Rohmer tinha meio século de existência quando a rodagem de “O joelho de Claire” lhe permitiu o encontro com Béatrice Romand e Fabrice Luchini na flor da idade (intérpretes que se mantiveram rostos indissociáveis da sua poética), e nunca mais deixou de filmar pessoas que não fossem substancialmente mais novas do que ele próprio. Ai, estes cristãos, sempre tão dispostos a mostrarem com ardor tudo aquilo que é anterior à escolha virtuosa!...



Título original: "Le genou de Claire"
Data de estreia: 1970
Realização: Éric Rohmer (1920-2010)
Direção de fotografia: Néstor Almendros
Interpretação: Jean-Claude Brialy, Aurora Cornu, Béatrice Romand, Laurence de Monaghan, Fabrice Luchini

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