"A MARQUESA DE O"

No seu discurso sobre a ideia de casal, o cineasta alemão Friedrich Murnau tanto quis denunciar a perpetuidade de interditos de cultura à fruição do amor, como discorreu com grandez franqueza sobre uma ameaça de sentido oposto, a ameaça que a inconstância erótica traz à solidez do elo sentimental. O seu filme “Aurora” (de 1927) apenas desenvolve este segundo lado do problema, e por isso pôde funcionar como encontro interseccional entre o conjunto de preocupações que lhe eram caras e o universo do cinéfilo Éric Rohmer, que usou a obra mítica como mote para a série de “Contos morais” que ele próprio filmou entre 1963 e 1972. Dito de outro modo, Rohmer apenas dialogou profundamente com a dimensão do discurso de Murnau com a qual se podia identificar (a dimensão conservadora, digamos assim…). Esse é o comércio que sempre se estabelece entre autores.
O escritor Heinrich von Kleist, artisticamente ativo durante a primeira década do século XIX, produziu um corpo de trabalho semanticamente mais ambíguo que o do seu compatriota cineasta acima mencionado. Em todo o caso, a leitura de obras como “Michael Kohlhaas” ou “O príncipe de Homburgo” não deixa margem para dúvidas sobre a qualidade revolucionária (digamos assim…) das suas inquietações. Se Rohmer adaptou ao cinema a novela kleistiana “A Marquesa de O”, talvez o tenha feito para definir, de forma meticulosa, aquilo que pode ser considerado o seu misticismo.
Por um lado, ele afasta-se da provocação coeva de Manoel de Oliveira, que, em pleno rescaldo da Revolução dos Cravos, estreou o enigmático “Benilde ou a Virgem Mãe”, onde se deixa em aberto a possibilidade de uma repetição do milagre da imaculada conceição. Rohmer não é um herege desafiador de dogmas católicos (muito pelo contrário), mas acompanha a lucidez de Kleist quando ela reivindica que, a despeito das excelentes razões que existem para se levantar possibilidades religiosas, o sexo, isso sim, é que um facto. Toda a série dos “Contos morais” fora, aliás, uma reflexão sobre o confronto entre a inevitabilidade desse facto e o desejo cristão da fidelidade no casamento.
Mas, por outro lado, o cineasta aproveita a sorte de o escritor ter conseguido compor uma história que só poderia ter sido inventada por Deus (algo extremamente raro, a despeito das acrocabacias virtuosísticas praticadas pelos profissionais da ficção), para insinuar que tudo na vida tem uma explicação lógica, tudo... menos o absurdo de peripécias que, de modo tão imprevisível quanto magnético, conduzem um homem e uma mulher até ao encontro conjugal. Digamos que o Deus rohmeriano parece manifestar-se às suas criaturas através da adjudicação do esplendor do acaso à felicidade amorosa. Percebe-se no fim do filme que o Conde (que até passa por morto e ressurrecto) não salvou a castidade da Marquesa porque estava destinado a salvá-la da viuvez.
“A Marquesa de O” é a primeira longa-metragem cujo protagonismo Rohmer entregou a uma personagem feminina, iniciando uma tendência que se tornará obsessiva na obra que continuará a produzir. O cineasta parece francamente impressionado pelo facto de a Marquesa encarar com mais tranquilidade a possibilidade de o seu ventre ter sido fecundado sem recurso à atividade sexual do que a revelação de que o seu salvador afinal não era um anjo (por definição, assexuado). Ora, não é preciso aderir à mundividência de Rohmer para reconhecer que o fumo de um ponto de vista tradicional acusa sempre o fogo de uma verdade parcial (perdoe o leitor esta visita que a rima faz à prosa, pelo bom sabor a adágio que nela se fixou): talvez só no âmbito de uma cultura feminina se possa conceber um perfil psicológico capaz de não ceder por completo à mediocridade da inclemência erótica. A religião cristã tanto inventou uma Virgem Maria como de certo modo a terá descoberto no caldo civilizacional que permitiu a sua afirmação.
É claro que, quando, em “O raio verde”, Rohmer propõe a figura de uma mulher da década de oitenta do século XX que recusa toda a proatividade sexual a despeito de uma solidão sentimental que a deprime profundamente, ele sabe que tem de a retratar como uma espécie de idiota dostoievskiana. A Marquesa de O, pelo contrário, tem um comportamento arrojado, ela é uma heroína a responder aos dilemas que estavam na ordem do seu dia.
Por vezes, pode um autor ter de se colocar no passado para que a verosimilhança de tal conjuntura traga clareza à explicitação de um tema que no presente se encontra diluído, ou pelo menos sujeito a uma variação que o obscurece. Foi o que, por exemplo, fez Albert Serra em “La mort de Louis XIV”: para ser o mais eloquente possível na demonstração da inépcia da medicina perante a finitude, desconsiderou o discurso fanfarrão da ciência contemporânea a favor da figura exemplar do médico clássico, tal como ela poderia ter sido alvo do interesse de um Molière escritor de tragédias. Rohmer terá pressentido que a entrega irrefletida a todo e qualquer impulso carnal não era compatível com a complexidade da psicologia humana e que portanto a revolução sexual sua contemporânea com toda a certeza padecia de alguma ligeireza otimista. A novela de Kleist forneceu-lhe vasto material para ele poder articular tal argumento.
Respeitador da integridade do texto literário exatamente como sempre o fez com a pessoa dos intérpretes ou com os espaços onde as suas ficções decorrem, Rohmer concebeu a reconstituição da época de “A Marquesa de O” sobretudo como a animação do imaginário fixado pelos pintores que a retrataram (Füssli, Greuze, etc.). Em todo o caso, os aspetos mais delicados da reconstituição pictórica talvez sejam a ténue estranheza semicoreográfica da gestualidade de Edith Clever e o calor teimoso da paleta, que, para além de sinalizar a luz da sensualidade meridional (contrastando com a sensualidade literária da língua alemã), quase chega a insinuar que os fogos da noite da batalha que abre a narrativa só foram apagados no sentido literal. É difícil reencontrar a normalidade após um período de guerra.
Se a perfeição do filme resulta em grande medida do encontro (talhado no céu…) entre duas sensibilidades refratárias à ênfase, a adaptação literária tem contudo a elegância de se mostrar tão absolutamente justa quanto não definitiva. De qualquer modo, Rohmer não ficou a dormir à sombra dessa bananeira crítica. Os constantes regressos que fez ao passado valeram-lhe os seus filmes mais audaciosos e causadores de férteis perplexidades.



Título original: "Die Marquise von O..."
Data de estreia: 1976
Realização: Éric Rohmer (1920-2010)
Direção de fotografia: Néstor Almendros
Interpretação: Edith Clever, Bruno Ganz, Edda Seippel, Peter Lühr, Otto Sander



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