"UMA RAPARIGA SEM NOME"

Talvez não haja muitas artes poéticas dedicadas ao elefante na sala. Mas foi isso mesmo que fez George Cukor, cineasta mais dado à subtileza do que ao estatuto autoral, nesta comédia vagamente órfã de furor cinéfilo. Se as peripécias da personagem Gladys Glover vão fazendo conversa fiada em torno da publicidade e da televisão, há um conjunto de discretos procedimentos quase brechtianos que orientam o espetador para o verdadeiro assunto de “Uma rapariga sem nome”, que é o cinema de ficção hollywoodiano: desde a manipulação da velocidade das imagens (a pintura acelerada do primeiro cartaz que ostenta o nome da protagonista) até à fugaz abolição da invisibilidade da montagem (a repetição da volta de carro à rotunda onde o cartaz está afixado), passando pela insinuação de uma relação de paronímia entre o nome dessa rotunda novaiorquina e a firma do estúdio produtor do filme (Columbus e Columbia)…
O espetador detetará com certeza outros sinais, se por uns instantes relativizar a sedução fácil do imaginário consagrado em objetos como “Sunset Boulevard” ou as várias versões de “A star is born” (a mais aclamada das quais tendo sido realizada pelo próprio Cukor). Se, nesses filmes tão acarinhados por todos aqueles que sonham com o ecrã, o motivo da decadência da celebridade é um ingrediente de evidente prazer romanesco, sintomático de uma cultura capitalista que prevê que apenas quinze pessoas consigam prolongar a duração da sua fama para além dos famosos quinze minutos de Andy Warhol, a comédia em discussão propõe uma abordagem ao fenómeno do star system que talvez seja mais astuta. Pois, quando a loura burra Gladys Glover percebe que a noção de average american girl com que pretendem cristalizar a sua imagem pública não corresponde a nenhuma verdade rigorosa, ela faz-nos perceber que a estrela de cinema é o mais eficaz testa-de-ferro para o vazio discursivo, que o brilho implacável da estrela permite que os fazedores de filmes se deem ao luxo de usarem uma arte tão promissora para nada gritarem, nada sussurrarem, nada arriscarem.
Em todo o caso, há alguém que se recusa a olhar para a rapariga sem nome como se esta fosse uma atração de circo ou de jardim zoológico. E se a ficção atribui esse papel ao personagem Pete Sheppard, será difícil não assimilar a figura do documentarista apaixonado àquela competência que toda a gente insiste em celebrar no realizador George Cukor: a direção de atores. Quase parece que o profissional impecável e pacificamente integrado no sistema de Hollywood está a reivindicar que a sua estratégia peculiar de resistência ao vazio para que tal indústria tende é o amor indefetível à matéria humana dos trabalhos que vai cumprindo. Seja ou não seja assim (quem tem medo das intenções do autor?), o filme “Uma rapariga sem nome” pode ser lido como uma variação cifrada do célebre aforismo pronunciado por Godard: “Todo o filme é um documentário sobre os seus intérpretes”.
Dito de outro modo, se a estrela de cinema é um inequívoco produto comercial, a pureza e a dureza dessa realidade podem ser corrompidas por aquele que pratica uma observação lírica do corpo rutilante. E Cukor foi o grande astrónomo de Judy Holliday, a atriz que aqui finge ser a personagem Gladys Glover. Ele permitiu que compreendêssemos que há menos distância entre Betelgeuse e Aldebarã do que aquela que separa Holliday de, por exemplo, Marlene Dietrich. Basta recordar o sumptuoso delírio de “A imperatriz vermelha”, em que se demonstra que a imagem da alemã foi um caso de triunfo sobre tudo e todos (mesmo sobre aqueles que produziram tal imagem), e compará-lo com a elegância com que nesta comédia Gladys Glover assume que faria quase tudo para ser famosa… mas não tudo. É claro que Judy Holliday estava à procura da celebridade. Mas que argumentos tinha ela para que o seu nome se distinguisse da multidão? Por que haveria o espetador de tomar esta emanação do Central Park de Nova Iorque por algo mais que uma rapariga vulgar? Judy Holliday era uma estrela tão-somente porque poderia não o ser. Cukor propõe que é este o teor paradoxal da sua aura, da sua poética, e o espetador não tem razões para duvidar.
Os projetos que uniram este par de criadores são percorridos por uma ténue energia didática destinada a diminuir a margem de ambiguidade que o espetador encontra no pronome “it” que abre o título original deste trabalho definitivo (“A mulher que nasceu ontem” e “A mulher que Deus me deu” parecem hoje esboços em crescendo de sofisticação). O que te deveria acontecer era o encontro de uma situação afetiva capaz de desmitificar o anseio da ascensão social. Porque o preço de Hollywood não é pago apenas pelo astro cadente: aquele que triunfa entrega-se à tirania do narcisismo e permanece à mercê de poderes muito maiores do que o seu (seis décadas antes do Movimento Me Too, já toda a gente sabia a verdadeira matéria de que os sonhos medíocres são feitos…).
Nesta altura da sua carreira, Cukor trabalhou bastante com um casal de atores/argumentistas (Ruth Gordon e Garson Kanin) que com toda a certeza transportavam aquilo que iam aprendendo com a sua conjugalidade para as ficções que escreviam. Perante a violência daquilo que John Cassavetes e Gena Rowlands haveriam de nos dar no futuro, este entendimento do papel da discussão na coesão do par pode parecer uma colher transportando mais doçura do que homem e mulher. Mas se pensarmos que às raparigas modernas, tão experientes no âmbito relacional, lhes é por vezes sugerido no cinema que só um Hugh Jackman do século XIX as poderia satisfazer de um ponto de vista afetivo... Caros Cukor, Holliday e Kanin, obrigado por nos mostrarem, à vossa maneira, que o amor é uma forma de sabedoria.



Título original: "It should happen to you"
Ano de estreia: 1954
Realização: George Cukor (1899-1983)
Argumento: Garson Kanin
Interpretação: Judy Holliday, Jack Lemmon, Peter Lawford

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