"VAMPIRO"

Ainda hoje são justamente célebres alguns dos achados visuais do “Vampiro” de Dreyer (é o caso da sequência do baile das sombras). Sublinhe-se que essas imagens de uma beleza surpreendente não se encontram submetidas a uma estrutura que o espetador possa de imediato sentir como nítida e implacável (característica que confere ao filme um travo alienígena no contexto geral da obra do autor). No que concerne ao formalismo, contudo, é apenas a recusa de sistematização que o afasta da monumentalidade atingida em “A paixão de Joana d’Arc” ou “A palavra”, já que, exatamente como nestes títulos, Dreyer realizou o “Vampiro” extraindo de cada uma das opções de forma os efeitos mais simples, concisos e diretos.
Neste enredo tão pouco consistente quanto seria expectável num universo vampírico, o protaganista pouco mais faz do que olhar. Mas há que distinguir dois tipos de planos referentes a essa observação incessante. Na primeira parte do filme, alguns planos-sequências começam por mostrar o olhar de Allan Gray, permitem que o movimento de câmara revele o objeto desse olhar (o folclore maléfico) e terminam com a integração do corpo do olhador nesse seu imaginário. Em contraste com este esplendor da alienação, os planos que recriam o ponto de vista do cadáver hipotético de Gray quando está a ser transportado dentro de um ataúde, planos esses que recorrem àquilo a que em português se chama “câmara subjetiva”, são paradoxalmente os mais objetivos de todo o filme – ou seja, aquilo que se vê nesses planos parece ser determinado apenas pela localização dos olhos do cadáver a ser transportado, ao contrário do que acontece no resto da obra, que é um exercício de encenação exacerbada.
Se Gray é apresentado como um sonhador que dificilmente consegue distinguir o real do ficcional, a sua experimentação realista de um estado efetivo de morte ensina-o a olhar para a absoluta ausência de fantasia. E isso, segundo Dreyer, é a fachada de um templo.
Descoberta uma chave, o cinéfilo deve fazê-la mestra das portas do seu próprio pensamento. Em todo o caso, lança-se aqui uma proposta de leitura com não mais veemência do que aquela que se pode atribuir a um rascunho.
Por influência de Griffith, as primeiras denúncias de intolerância histórica ficcionadas por Dreyer disparavam em todas as direções do espectro ideológico. No entanto, o dinamarquês revelou toda a sua fibra quando começou a orientar a energia crítica (o protesto…) para o funcionamento do cristianismo, para si mesmo, quando decidiu acusar os pesadelos que efetivamente foram e são praticados em nome daquele que era o seu sonho mais profundo. As imagens que ele produziu da dimensão persecutória da religião institucionalizada serão porventura as mais convincentes e duradouras da sétima arte. A crítica estendeu-se ao sectarismo exposto em “A palavra”. Mas é precisamente esta obra que, na tangência ao delírio, mostra como a raiva dreyeriana pretendia afinal restaurar a integridade da religião ao expurgá-la de todo e qualquer flirt com a morte. E é essa recondução da religião à sua essência vital que Dreyer parece também perseguir no seio dos códigos de um filme de género como o “Vampiro”. Aliás, a evolução que sofre Johannes, o personagem louco de “A palavra”, é vagamente semelhante à de Allan Gray – ninguém sabe por que razão Johannes supera o estado de insanidade, mas a verdade é que a recuperação parece ser catalisada pela morte da sua cunhada.
Se Murnau fez de “Nosferatu” um combatente ambíguo na batalha entre luz e trevas que animava o expressionismo germânico, com o seu “Vampiro” Dreyer quis reduzir a densidade que existe na sombra para conseguir encontrar o poder de revelação da transparência (mesmo ao nível dos efeitos especiais). O gesto mais característico da maneira dreyeriana é aquele que limpa o objeto filmado daquilo que impede que o espetador veja o que nele está realmente em causa: é a retirada da maquilhagem à atriz Renée Falconetti, é a retirada dos elementos decorativos do cenário na sequência final de “A palavra”, é a retirada do próprio discurso religioso naquele que será a quintessência do filme religioso: “Gertrud”. Se o tão ambicionado projeto sobre a vida de Cristo não chegou a ser concretizado… confiemos em deus: é porque talvez já não fosse necessário.



Título original: "Vampyr"
Data de estreia: 1932
Realização: Carl Theodor Dreyer (1889-1968)
Direção de fotografia: Rudolph Maté
Interpretação: Julian West, Maurice Schutz, Rena Mandel, Sybille Schmitz, Jan Hieronimko, Albert Bras

Comentários

Mensagens populares