"NANA"

Quando Valérie Massadian recolheu as imagens do seu primeiro filme, o mundo rural que foi objeto da sua atenção poderia ser encontrado à distância de poucos quilómetros da capital francesa. Tal mundo ainda subsistirá na data de escrita do presente comentário, mas o mais provável é que as mãos das crianças educadas no seu contexto estejam já mais habituadas à lisura táctil de um tablet do que ao perfume exalado pelo musgo. Estaremos a virar a esquina de uma pré-história? Conjeturas…
O certo é que a circunstância de “Nana” começar com a exibição documental da matança de um porco, evento perfeitamente vulgar no âmbito da ruralidade, causou um certo sabor a escândalo aquando da sua estreia. Já sabemos que as pessoas sensíveis não são capazes de ver touradas… Mas, para ficarmos mais perto da verdadeira natureza do coração humano (da diferença que existe entre ele e o rudimentar psiquismo do animal), é preciso que o facto intolerável não seja sonsamente mantido longe da vista. E o facto intolerável não é o sangue real que escorre das leis da biologia, mas o papel decisivo da solidão no crescimento de uma criança.
Nana não terá mais de quatro anos de idade e vive com a mãe numa casa isolada de aldeia. A mãe sente-se frustrada com o papel que tem de cumprir. Sabemos isso pelo nervosismo sofredor dos gestos da atriz que a interpreta (a eloquente Marie Delmas) e sobretudo pelas brincadeiras com que Nana procura inconscientemente entender as razões por que ela um dia a abandona: a tentativa de solucionar um puzzle acompanhada da recordação das lamúrias de um adulto saturado, o aprisionamento do carrinho da polícia para que ninguém mais seja (se sinta) preso
O que aconteceria a João e Maria se o seu abandono na floresta não fosse feérico? Nana esmera-se a repetir os gestos que observara no comportamento dos adultos. Ora, a partir do momento em que desaparece toda a proteção (que no seu caso já era mínima), os gestos imitativos da criança deixam de ser lúdicos e tornam-se sobreviventes. Note-se como ela parece ganhar destreza em comparação com a sequência em que, ainda na companhia da mãe, tentava cortar sozinha o alimento... Ou será o espetador que, impossibilitado de proteger a personagem, fica com o olhar desprotegido? Seja qual for o caso, pode dizer-se que o filme mostra que a perceção da falibilidade do cuidador é o dado de que a criança precisa para poder começar a amadurecer.
Claro que esta alegoria antropológica só se torna percetível na exata medida em que o caso de Nana parece excecional. Pois é notável a crueldade com que esta criança se desembaraça (no curto prazo, obviamente) da memória da cuidadora. Incapaz de encarar e entender a noção de abandono, Nana cria para si mesma a fábula de que a mãe terá morrido. Será esse o sentido da sequência em que ela devolve o livro de contos infantis à imagem onírica do cadáver da mãe. Em tal ponto do filme, essa imagem já não poderá ser compreendida como a encenação de uma cobardia evasiva, mas, muito pelo contrário, como uma estratégia universal de sobrevivência. O Homem inventa imagens para poder ter um coração de besta. A diferença entre a imagem da matança do porco e a imagem da mãe morta não é qualitativa.
Exatamente como em “O espírito da comeia” de Victor Erice, título cinematográfico central no que concerne ao pensamento sobre a infância, “Nana” coloca o espetador num ponto de vista cognitivo que sugere aquele que será o da criança: a informação que lhe chega parece escassa por ser toda ela impactante, a capacidade de leitura do facto intolerável depende da disponibilidade para o oblíquo. Para além disso, como nem a encenação nem a mistura sonora dão especial ênfase à voz humana, quase parece que a fala de Nana não se distingue dos outros burburinhos da natureza. A infância do mundo, ou seja, a ruralidade minimal, tem aqui um encontro privilegiado com a estética da desarrumação pueril. Estaremos a caminhar pela vereda de uma história eterna? Certezas...



Título original: "Nana"
Data de estreia: 2011
Realização: Valérie Massadian (1972-?)
Interpretação: Kelyna Lecomte, Marie Delmas, Alain Sabras








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