"THE CAMERAMAN"

Nos últimos filmes que pôde dirigir com plena autonomia, Buster Keaton fez do seu Pamplinas um copinho de leite que, transtornado pela atração por uma mulher, faz a virilidade passar de ficção a facto. O que torna o seu personagem heroico é sempre a tensão e a urgência (ou seja, a sinceridade) do desejo. Se Chaplin se autoencena como todo-coração (o que nos valeu a insuperável sequência final de “Luzes da cidade”), Keaton pretende mostrar que há sempre algo de primitivo nas coisas do amor – é essa a tese só na aparência leviana da sua primeira longa-metragem, “The three ages”.
Ora, parece que o grande palhaço não se quis despedir da liberdade criadora sem dissipar as dúvidas que ainda pudessem persistir quanto ao conteúdo severamente sexual do seu trabalho. Realizado muito antes de a censura ter suposto que podia ocultar fosse o que fosse no ecrã hollywoodiano, “The cameraman” deleita-se a expor o erotismo por via da evidência táctil, desde a cena inicial, em que os apertos da multidão obrigam Pamplinas a sorver o perfume da rapariga por quem se apaixonará, até ao ousadíssimo momento em que, tendo ele perdido toda a roupa numa piscina pública, um bando de nadadoras roça o seu corpo desarmado, passando pela hilariante cena de carga contrária em que o palhaço tem de partilhar um minúsculo balneário com outro homem, e em que os gestos que ambos fazem para se despir produzem aquele que será certamente um dos momentos mais anti-homoeróticos da história do cinema.
A própria ligação de Pamplinas a uma máquina (neste caso, a máquina de filmar) é uma forma de o tornar mais eficaz na expressão da vida instintiva. Note-se que, só quando ele prolonga a dependência tecnológica na simétrica parceria com um macaco, é que começa a ter sucesso como cineasta. E é o macaco que filma as imagens que levarão à denúncia da impostura associada ao seu rival, o que, ousando passar do plano da narrativa para o domínio das ideias, pode com justa causa ser interpretado como o pressentimento de que a verdade a que o cinema tem acesso há de ser bem mais inconsciente do que documental.
A grande originalidade de "The cameraman" reside no facto de o espetador ser permanentemente obrigado a tomar consciência da presença e do significado desta câmara fálica – não só da câmara da narrativa, mas do próprio aparelho que Keaton utilizou para filmar. A fita sistematiza, portanto, o mais simples e evidente dos gestos metacinematográficos, algo que foi sendo preparado ao longo da obra do autor em propostas tão pontuais quanto notáveis:

“One week” (1920) – quando a esposa nua precisa de sair da banheira onde está a tomar banho para recuperar o sabonete que caiu ao chão, uma mão tapa a câmara para tentar defender essa ação do voyeurismo do espetador: apesar de se tratar de um procedimento próximo do distanciamento brechtiano, a verdade é que ele intensifica o erotismo da sequência;

“The goat” (1921) – Pamplinas está sentado na frente da locomotiva de um comboio que se desloca até ao primeiro plano da imagem: trata-se de uma espécie de zoom-ereção em que a alteração visual é efetuada pelo próprio comboio e a câmara funciona apenas como limite do movimento (e como revelação da imagem provisoriamente empolada do protagonista);

“Battling Butler” (1926) – quando Pamplinas olha para a sua amada durante o treino para o combate de boxe, ao enquadramento da “câmara subjetiva” acrescenta-se um outro, constituído pelo braço musculado do oponente desportivo: a reflexão sobre a virilidade torna-se assim visualmente clara.

Estes são exemplos de uma encenação dita "formalista", ou seja, de uma maneira de trabalhar os diversos parâmetros da forma cinematográfica de modo a que o seu realce seja inseparável da produção de sentido. E, embora “The cameraman” seja um repositório de achados no tratamento da “câmara de filmar” enquanto elemento diegético (alguns bastante divertidos, como a paródia de uma rodagem documental no episódio de Chinatown), a sua eloquência é manifestamente outra quando permite que o espetador sinta a mão daquele que, nos bastidores da autoria, propõe a configuração visual da narrativa. Os três momentos mais produtivos dessa estratégia serão provavelmente os seguintes:

Contraponto de movimentos – a câmara efetua elegantes movimentos ascendentes e descendentes enquanto Pamplinas, ansioso por causa da iminente chamada telefónica da amada, corre como um desalmado para cima e para baixo nas escadas do seu prédio: como toda a sequência corresponde a um plano único (sem corte de montagem, portanto), a ligação entre o frenesi desejante do corpo e o seu avatar maquinal pode assim ser contemplada;

Constrangimento espácio-temporal – num outro plano-sequência, já referido anteriormente, Pamplinas tem de partilhar um balneário com outro homem para se poder despir: a duração excessiva do plano acaba por dirigir a atenção do espetador para o teor demasiado apertado e fixo do enquadramento, o que produz a imagem cabal da repugnância táctil;

Desafio à perceção – as primeiras imagens em movimento criadas por Pamplinas mostram toda a sua falta de know-how: essas sobreposições visuais são cómicas no contexto de “The cameraman”, mas a verdade é que elas poderiam ser fragmentos de um filme experimental, tanto dessa época, como do cinema que se faz um século depois…

Experimentar: eis o que Buster Keaton deixou de poder fazer quando aceitou começar a trabalhar no âmbito do grande estúdio Metro-Goldwyn-Mayer (decisão que fora vivamente desaconselhada pelo seu amigo Charles Chaplin). “The cameraman” foi o primeiro produto desse contrato, mas a história de integração que ele narra é inversamente proporcional ao desajustamento que o palhaço, mestre do acaso, do improviso e da informalidade, experimentou no seio de um estúdio mastodôntico e governado por tiranetes. Foi, aliás, por mero acaso que ele ainda conseguiu rodar o filme à sua maneira, uma maneira próxima da leveza eternamente anacrónica da ferrotipia (a especialidade de Pamplinas no início da narrativa). A ordem empresarial não descansou enquanto não emudeceu aquele elemento, anárquico malgré lui, que iria estar sempre a partir o vidro da porta do escritório.



Data de estreia: 1928
Realização: Edward Sedgwick & Buster Keaton (1895-1966)
Interpretação: Buster Keaton, Marceline Day, Harry Gribbon

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