"PAMPLINAS MAQUINISTA"

Para os seus filmes poderem ser braços abertos, os palhaços do burlesco nunca necessitaram de deixar de dizer o que tinha mesmo de ser dito. A sua comédia não era um combate entre o sangue dos outros e o lápis azul. Nesse aspeto, Chaplin foi um funâmbulo com uma enorme capacidade de equilíbrio (pelo menos enquanto perenizou a figura do little fellow). A corda bamba foi mais inclemente com Buster Keaton: “Pamplinas maquinista”, passo ambicioso em que ele ousou pôr a sua situação narrativa matricial – o antagonismo entre machos – na cena da História, foi recebido com alguma incompreensão.
Mas era preciso fazer um filme assim, era preciso aprofundar a violência que a comédia aligeira, aprofundá-la até escancarar a morte e, no sentido aparentemente inverso, era preciso desfazer a diferença artificial que se supõe existir entre um inequívoco fôlego épico e a inépcia do herói. Ou seja, impunha-se uma redefinição do conceito de virilidade. Porque é que Pamplinas é viril? Porque merece ele a farda de guerreiro e o coração embevecido de uma fêmea?
Em primeiro lugar, Pamplinas é um genial cultor do imediato (e da sua reverberação no acaso). Num dos momentos mais conseguidos do filme, ele encontra-se de tal modo concentrado no tratamento da lenha necessária ao funcionamento do seu comboio que nem percebe que todo o exército a que ele gostaria de pertencer está a marchar, ao fundo, na direção contrária à sua. A cena afigurar-se-á tanto mais brilhante quanto mais o espetador nela detetar um aparente desperdício dos valores de produção... Ora, devemos sucumbir à beleza dos movimentos da gesta ou à gargalhada provocada por um palhaço incapaz de lidar com the big picture? Na verdade, a escolha é supérflua: é precisamente a habilidade que Pamplinas tem para reagir ao problema imediato e apenas a esse problema, é essa reserva inesgotável de expedientes tão ad hoc quanto excêntricos (como se o burlesco nos posicionasse continuamente no início da história da invenção), que o leva a oferecer uma vitória à sua causa. É certo que, nesta recriação travessa de um episódio de guerra em que os combatentes parecem pouco mais fazer do que pregar partidas (por vezes letais) uns aos outros, não se vislumbram encadeamentos previsíveis entre cada gesto convictamente de curto prazo e o grande sucesso final para o qual ele sem querer contribui. Mas quem pode garantir que não é essa, afinal, a autêntica mecânica do sucesso? Da noção de estratégia ao argumento do desígnio para a existência de Deus – o riso faz vacilar aquilo que o ocidente toma por siso.
Isto já chegaria para tonificar a pertinência do que significa ser homem. Mas há mais. Neste filme, Pamplinas demonstra que a sua disponibilidade afetiva se restringe a dois objetos: uma mulher e a locomotiva que lhe permite ganhar o pão. O trabalho é assim colocado num lugar psíquico afim da sexualidade, o que faz com que a máquina assuma uma parafernália de significados demasiados profundos para o palhaço lhes poder escapar.
Para Pamplinas, esta máquina é uma projeção fálica – assim o confirma a sua forma, a sua potência e sobretudo a urgência obsessiva da utilidade que ele lhe confere. Mas é também uma casa andante, onde o par keatoniano pode conjugar a lida doméstica com a aventura do movimento. A máquina é também a vocação de cineasta, a câmara de filmar que precisa, como o comboio, de carris para sair em viagem (a beleza dos travellings de “Pamplinas maquinista” é sempre elogiada enquanto prodígio técnico, mas vale a pena encontrar nela o esboço do formalismo metacinematográfico que o cineasta sistematizará em “The cameraman”). E, sobretudo, ela é portadora de um discurso rebelde. Pois, se Chaplin acusa a desumanização moderna trazida pela mecanização, e Tati satiriza o progresso tecnológico elegendo a avaria como o seu achado mais constante, Keaton vem trazer uma esperança estrambólica: a máquina atinge o seu maior poder quando é desviada da função para a qual foi desenhada.
Pamplinas pega num bombo e num violino, essas gentis e arcaicas máquinas de fazer música e, quando a necessidade aguça o engenho, faz delas um barco e um remo (“The Playhouse”). Já aqui, ele reassume o controlo da sua locomotiva e, na companhia da rapariga que lhe serve de verdadeiro combustível, torna-a na mais eficaz arma de guerra, torna-a num general. E Buster Keaton pegou na câmara de filmar e inventou rigorosíssimas máquinas de riso, inventou destinos deus ex machina, enquanto desenvolvia técnicas de desensaio dos intérpretes que levaram o cinema para um lugar imprevisível.
No momento final de “Pamplinas maquinista”, o palhaço, agora soldado, improvisa uma posição diferente para poder beijar a sua amada ao mesmo tempo que cumpre o dever de continência militar. A virilidade pode ser contada de outra maneira



Título original: "The General"
Data de estreia: 1926
Realização: Clyde Bruckman & Buster Keaton (1895-1966)
Interpretação: Buster Keaton, Marion Mack

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