"A SOMBRA DO CAÇADOR"
"Gostas mais do papá ou da mamã?”
Esta pergunta constitui um dos píncaros da estupidez. Não é preciso esclarecer porquê, claro, mas vale a pena destacar que, no formato familiar normativo (há outros, desde logo a hipótese da mãe sozinha, cuja validade é convictamente defendida em “A sombra do caçador”), o pai e a mãe representam figuras de caráter tão complexo que, a despeito das cumplicidades e dos ressentimentos que se desenvolvem na relação com os filhos, nunca se opõem num maniqueísmo grosseiro.
O único filme realizado pelo ator Charles Laughton conta a história de um pai e de uma mãe que falharam. Impressionado com a miséria da Grande Depressão iniciada em 1929, o pai tenta assegurar a sobrevivência da prole por meios que se revelam ainda menos ilícitos do que ingénuos: apesar de estarem na posse de uma fortuna roubada a um banco, os seus filhos acabarão por cair na mais absoluta indigência, e ele próprio deixará de os poder proteger ao ser sentenciado à pena de morte. Já a mãe trocará a profundidade da aliança com as crianças por uma fé cega (e quase adolescente) no seu segundo marido. Também perderá a vida, precisamente às mãos deste, um serial killer tão ao gosto da cultura popular norte-americana.
Uma orfandade adquirida de forma tão traumática tem de descambar em excesso emocional. Fundindo-se com o ponto de vista impreciso mas infinitamente sincero dessas crianças desprotegidas, a trama narrativa reiventa as personagens realistas do pai e da mãe como duas figuras antitéticas que pertencem à ordem do mito (figuras cujo embate desencadeará uma meditação moral). De um lado, o reverendo Harry Powell, que acumula em si toda a perversidade de todos os padrastos dos contos de fadas. Do outro, Rachel Cooper, anunciada no céu estrelado que introduz o filme ao som de um verso de canção infantil: “Dream, little one, dream!”
Robert Mitchum interpreta o vilão com uma clara dose de ironia superficial, como se nunca quisesse tornar o fingimento convincente. Torna-se muito mais sincero quando explode de raiva e se aproxima de uma criatura expressionista. O grito hiperbólico à beira-rio e as mãos de Nosferatu quando persegue as crianças na cave aliam-se na perfeição ao prolongamento do seu corpo na ameaça da sombra. A estética do film noir vai ao encontro das coordenadas temporais da narrativa (a ação decorre num período em que o cinema expressionista alemão ainda podia reivindicar atualidade).
O papel de Rachel é assumido pela sexagenária Lillian Gish, a primeira star da história do cinema, que no lendário “Intolerância” (de 1916) fora filmada como uma espécie de mãe eterna da humanidade. Se o cinéfilo se pode sentir tentado a escolher a primeira parte de “Fanny e Alexandre” como a sua recordação de Natal, ou se é mesmo forçado a mudar o afeto que nutre pelos pássaros depois das maldades do senhor Hitchcock, terá também a oportunidade de minorar os efeitos de uma orfandade mais ou menos literal nos braços desta personagem de uma positividade avassaladora.
O maniqueísmo que o filme (na aparência) instala não tem, contudo, uma leitura inequívoca. O que é que verdadeiramente está em jogo na sua retórica de oposição? De modo algum a questão pai-mãe. Certamente as dúvidas sobre a masculinidade em confronto com as convicções quanto à feminilidade. Certamente o mal contra o bem, mas sendo essa batalha entendida de uma forma que nada tem a ver com o discurso do pregador-padrasto. E, claro, também aqui se debate a diferença entre discurso e ação. Mas talvez a contenda mais subtil de “A sombra do caçador” seja aquela que opõe a sedução à rudeza. Pois a primeira limita-se a ocultar a intenção sensual sob a capa de uma aparente adesão ideológica (à exceção de Rachel, todas as mulheres ficam de beiço caído pela personagem de Mitchum), enquanto a rudeza se revela essencial para que um conjunto de ideias generosas possa ser levado a um grau razoável de prática – sem hipocrisia, sem lassidão, sem mania das grandezas. Isto é tão justo que surpreende.
Fugindo do seu padrasto caçador, as crianças navegam, pois, num rio, até chegarem à casa do anjo que as protegerá. A partir dessa travessia, a encenação afasta-se do classicismo narrativo devedor do excelente romance de Davis Grubb no qual se baseou, afasta-se também do diálogo com o expressionismo fílmico, e deixa-se perder numa imagética pueril. Quando o pequeno John, dormindo com a irmã num estábulo, vê o vilão ao longe, o vulto deste já se tornou um (mero?) parente do teatro de sombras chinesas. Aproveitemos!
É claro que tal onirismo também é bastante ambíguo. Pois, se nesse mesmo estábulo, o facto de a câmara fornecer um detalhe das tetas das vacas reforça o calor emotivo da canção de embalar que as crianças acabam de ouvir, o início da travessia fluvial sobrepõe imagens líricas de uma teia de aranha e de uma rã à canção da pequena Pearl, que fala de uma família de... moscas.
Raccord melodioso: quando Harry e Rachel se preparam para o embate decisivo, eles entoam uma canção que fala da proteção divina como se esta se confundisse com um aconchego parental. A canção é a mesma e é cantada ao mesmo tempo. Mas, como se sabe, a diferença entre deus e o diabo reside no pormenor. Aos versos do refrão (“Leaning, leaning, safe and secure from all alarms / Leaning, leaning, leaning on the everlasting arms”), Rachel acrescenta uma perspetiva revolucionária – Leaning on Jesus! Sim, a despeito do seu nome remeter para uma importante figura materna da mitologia judaica, o triunfo da Mãe cabal sobre o falso padrasto pode ser vagamente equiparado à revisão que o Novo Testamento fez do Testamento que lhe era anterior. Não há aqui um problema verdadeiramente maniqueísta. O filme aceita os fundamentos religiosos do Ocidente, mas acarinha uma interpretação desses fundamentos que se oponha ao obscurantismo e seja amiga da alegria de viver: talvez seja esta a forma mais rigorosa de entender o que aqui se discute, de um ponto de vista filosófico. E, nesse aspeto (mas não no que concerne às questões estéticas), andamos próximos da generosidade de um John Ford.
O exemplo mais relevante dessa postura encontra-se no discurso sobre a sexualidade. A castidade de Rachel nada tem a ver com a tacanhez das beatas, nem com a patologia do pregador, que está seduzido pela mortandade (da primeira parte) do Livro de Deus. Talvez por ser burra velha, ela simplesmente sabe que o erotismo é causa de todo o tipo de disparates (e não há como contestá-la). Mas a relação educativa que ela estabelece com o pequeno John, alegorizada no gesto da partilha benigna de uma maçã, pressupõe que, mesmo (ou até sobretudo) em termos religiosos, a relação entre um homem e uma mulher deve ser entendida, não como uma maldição, mas como uma utopia.
A má nova é que a personagem de Rachel é um puro produto de onirismo literário e cinematográfico. No mundo dito real, haverá menos fadas de rudeza que pais perplexos. Como conseguem as crianças sobreviver ao facto de lhes contarem tão mal a vida?
Esta pergunta constitui um dos píncaros da estupidez. Não é preciso esclarecer porquê, claro, mas vale a pena destacar que, no formato familiar normativo (há outros, desde logo a hipótese da mãe sozinha, cuja validade é convictamente defendida em “A sombra do caçador”), o pai e a mãe representam figuras de caráter tão complexo que, a despeito das cumplicidades e dos ressentimentos que se desenvolvem na relação com os filhos, nunca se opõem num maniqueísmo grosseiro.
O único filme realizado pelo ator Charles Laughton conta a história de um pai e de uma mãe que falharam. Impressionado com a miséria da Grande Depressão iniciada em 1929, o pai tenta assegurar a sobrevivência da prole por meios que se revelam ainda menos ilícitos do que ingénuos: apesar de estarem na posse de uma fortuna roubada a um banco, os seus filhos acabarão por cair na mais absoluta indigência, e ele próprio deixará de os poder proteger ao ser sentenciado à pena de morte. Já a mãe trocará a profundidade da aliança com as crianças por uma fé cega (e quase adolescente) no seu segundo marido. Também perderá a vida, precisamente às mãos deste, um serial killer tão ao gosto da cultura popular norte-americana.
Uma orfandade adquirida de forma tão traumática tem de descambar em excesso emocional. Fundindo-se com o ponto de vista impreciso mas infinitamente sincero dessas crianças desprotegidas, a trama narrativa reiventa as personagens realistas do pai e da mãe como duas figuras antitéticas que pertencem à ordem do mito (figuras cujo embate desencadeará uma meditação moral). De um lado, o reverendo Harry Powell, que acumula em si toda a perversidade de todos os padrastos dos contos de fadas. Do outro, Rachel Cooper, anunciada no céu estrelado que introduz o filme ao som de um verso de canção infantil: “Dream, little one, dream!”
Robert Mitchum interpreta o vilão com uma clara dose de ironia superficial, como se nunca quisesse tornar o fingimento convincente. Torna-se muito mais sincero quando explode de raiva e se aproxima de uma criatura expressionista. O grito hiperbólico à beira-rio e as mãos de Nosferatu quando persegue as crianças na cave aliam-se na perfeição ao prolongamento do seu corpo na ameaça da sombra. A estética do film noir vai ao encontro das coordenadas temporais da narrativa (a ação decorre num período em que o cinema expressionista alemão ainda podia reivindicar atualidade).
O papel de Rachel é assumido pela sexagenária Lillian Gish, a primeira star da história do cinema, que no lendário “Intolerância” (de 1916) fora filmada como uma espécie de mãe eterna da humanidade. Se o cinéfilo se pode sentir tentado a escolher a primeira parte de “Fanny e Alexandre” como a sua recordação de Natal, ou se é mesmo forçado a mudar o afeto que nutre pelos pássaros depois das maldades do senhor Hitchcock, terá também a oportunidade de minorar os efeitos de uma orfandade mais ou menos literal nos braços desta personagem de uma positividade avassaladora.
O maniqueísmo que o filme (na aparência) instala não tem, contudo, uma leitura inequívoca. O que é que verdadeiramente está em jogo na sua retórica de oposição? De modo algum a questão pai-mãe. Certamente as dúvidas sobre a masculinidade em confronto com as convicções quanto à feminilidade. Certamente o mal contra o bem, mas sendo essa batalha entendida de uma forma que nada tem a ver com o discurso do pregador-padrasto. E, claro, também aqui se debate a diferença entre discurso e ação. Mas talvez a contenda mais subtil de “A sombra do caçador” seja aquela que opõe a sedução à rudeza. Pois a primeira limita-se a ocultar a intenção sensual sob a capa de uma aparente adesão ideológica (à exceção de Rachel, todas as mulheres ficam de beiço caído pela personagem de Mitchum), enquanto a rudeza se revela essencial para que um conjunto de ideias generosas possa ser levado a um grau razoável de prática – sem hipocrisia, sem lassidão, sem mania das grandezas. Isto é tão justo que surpreende.
Fugindo do seu padrasto caçador, as crianças navegam, pois, num rio, até chegarem à casa do anjo que as protegerá. A partir dessa travessia, a encenação afasta-se do classicismo narrativo devedor do excelente romance de Davis Grubb no qual se baseou, afasta-se também do diálogo com o expressionismo fílmico, e deixa-se perder numa imagética pueril. Quando o pequeno John, dormindo com a irmã num estábulo, vê o vilão ao longe, o vulto deste já se tornou um (mero?) parente do teatro de sombras chinesas. Aproveitemos!
É claro que tal onirismo também é bastante ambíguo. Pois, se nesse mesmo estábulo, o facto de a câmara fornecer um detalhe das tetas das vacas reforça o calor emotivo da canção de embalar que as crianças acabam de ouvir, o início da travessia fluvial sobrepõe imagens líricas de uma teia de aranha e de uma rã à canção da pequena Pearl, que fala de uma família de... moscas.
Raccord melodioso: quando Harry e Rachel se preparam para o embate decisivo, eles entoam uma canção que fala da proteção divina como se esta se confundisse com um aconchego parental. A canção é a mesma e é cantada ao mesmo tempo. Mas, como se sabe, a diferença entre deus e o diabo reside no pormenor. Aos versos do refrão (“Leaning, leaning, safe and secure from all alarms / Leaning, leaning, leaning on the everlasting arms”), Rachel acrescenta uma perspetiva revolucionária – Leaning on Jesus! Sim, a despeito do seu nome remeter para uma importante figura materna da mitologia judaica, o triunfo da Mãe cabal sobre o falso padrasto pode ser vagamente equiparado à revisão que o Novo Testamento fez do Testamento que lhe era anterior. Não há aqui um problema verdadeiramente maniqueísta. O filme aceita os fundamentos religiosos do Ocidente, mas acarinha uma interpretação desses fundamentos que se oponha ao obscurantismo e seja amiga da alegria de viver: talvez seja esta a forma mais rigorosa de entender o que aqui se discute, de um ponto de vista filosófico. E, nesse aspeto (mas não no que concerne às questões estéticas), andamos próximos da generosidade de um John Ford.
O exemplo mais relevante dessa postura encontra-se no discurso sobre a sexualidade. A castidade de Rachel nada tem a ver com a tacanhez das beatas, nem com a patologia do pregador, que está seduzido pela mortandade (da primeira parte) do Livro de Deus. Talvez por ser burra velha, ela simplesmente sabe que o erotismo é causa de todo o tipo de disparates (e não há como contestá-la). Mas a relação educativa que ela estabelece com o pequeno John, alegorizada no gesto da partilha benigna de uma maçã, pressupõe que, mesmo (ou até sobretudo) em termos religiosos, a relação entre um homem e uma mulher deve ser entendida, não como uma maldição, mas como uma utopia.
A má nova é que a personagem de Rachel é um puro produto de onirismo literário e cinematográfico. No mundo dito real, haverá menos fadas de rudeza que pais perplexos. Como conseguem as crianças sobreviver ao facto de lhes contarem tão mal a vida?
Título original: "The night of the hunter"
Data de estreia: 1955
Realização: Charles Laughton (1899-1962)
Direção de fotografia: Stanley Cortez
Interpretação: Robert Mitchum, Lillian Gish, Shelley Winters, Billy Chapin, Sally Jane Bruce
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