"THE PLAYHOUSE"

Buster Keaton não foi o engenheiro que gostaria de ter sido, mas destacou-se como incansável engenhocas. O que se perde em universo paralelo ganha-se em universidade da vida: é o humor em sentido lato que permite que, se a notoriedade imediata de “The Playhouse” se deveu sobretudo ao triunfo técnico, o sonho com que a proposta narrativa principia tenha uma função de prognóstico que com toda a certeza teria agradado aos homens dos tempos mais antigos.
Pamplinas não sabe que a rapariga de quem gosta tem uma gémea tal e qual e, mesmo depois de ficar a par desse obscuro problema, está sempre a confundir o seu objeto de desejo (pois se as manas são tal e qual!…). O sonho que antecede tais peripécias cómicas prevê candidamente que a ameaça do mesmo se deve combater com o investimento no outro. E “The Playhouse” é de facto uma notável celebração da alteridade.
Ao contrário da experiência de ilusionismo fílmico que, duas décadas antes, Georges Méliès produzira em “L’homme orchestre”, Buster Keaton está aqui menos interessado em multiplicar a sua imagem reconhecível do que em representar personagens inesperadamente diferentes entre si. Aliás, há de ser sempre esse ânimo caleidoscópico a nortear a composição e recomposição da figura que os portugueses conhecem como “Pamplinas”: do aventureiro pérfido de “Frozen North” ao menino da mamã de “Battling Butler”, a passagem do palhaço a imagem pública pressuporá que ele seja tomado por um outro (é a arte poética insinuada em “The goat”).
Mais importante, porém, que esta sinalização do que é afinal o anseio usual do intérprete, é o facto de Keaton mostrar em “The Playhouse” toda a complexidade da noção de autor cinematográfico. Parodiando a vaidade do seu contemporâneo Thomas Ince, ele reconhece o valor imprescindível da equipa (no caso deste filme, por exemplo, o talento do operador de câmara Elgin Lessley revelou-se absolutamente determinante). Por outro lado, o autor do género burlesco revela que a sua capacidade demiúrgica não pode ser dissociada da capacidade para ser ator e da capacidade para ser espetador de si mesmo. No princípio de “The Playhouse”, é o espetador. E, se se puser outros filmes do autor ao barulho, note-se que o verbo introdutório de “Sherlock Jr.” finge dizer o contrário do que afinal diz: o palhaço do cinema mudo, em toda a sua declinação semântica, é a síntese não assumida, e por isso mesmo cómica, entre um agir ad hoc e um projetar inconsciente.
Na curta-metragem de 1921, a corrente da alteridade tem ainda outras consequências. Pois esta evocação da vetusta arte teatral (que Keaton conhecia desde o início da linha quiromântica da vida) é resolvida por meio de uma experimentação que é cinematograficamente endémica. Os palcos não conheciam a aceleração fotográfica, a estonteante exposição múltipla e sobretudo o grau de evidência de realidade possibilitado pela sétima arte. Se a magnífica cena do despertar se resolve por um golpe de teatro, a verdade é que a eficácia deste se deve à capacidade única que o cinema tem para mergulhar o espetador na plena ilusão realista. Ingmar Bergman, que também vacilará entre palco e ecrã, não desdenharia deste achado singular.
Poder-se-á até detetar uma reivindicação moral da heterossexualidade na subtil transição que o fim do filme opera entre a catástrofe do fogo e a catástrofe da água (como se isso fosse o resultado de uma afinação), e no encerramento temporário do rival masculino na jaula de onde Pamplinas saíra para representar o único papel da vigília, o papel de uma animalidade sem o tempero do espírito feminino. A imagem final de “Battling Butler”, quando o boxeur ilibado da violência pela namorada nos aparece tão nu quanto envergando um chapéu alto, parece vir em auxílio desta hipótese de leitura.
Em todo o caso, se isto parecer interpretação em demasia, o filme responderá com a sua proposta mais nítida: é a generosidade polissémica do verbo “to play” (representar, brincar) que alforria por instantes os operários e lhes permite aceder a um tipo de vida outro, certamente mais livre e feliz. A já aludida cena do despertar só parece fazer parte de um melodrama político (oh!, a crueldade de um desepejo...) para mais claramente ser desfeita pela analogia entre lar e teatro. Buster Keaton não quis esconder a dimensão lúdica do seu trabalho. Pelo contrário, ele fez dela uma inundação.


Data de estreia: 1921
Realização: Edward F. Cline & Buster Keaton (1895-1966)
Interpretação: Buster Keaton, Virginia Fox, Joe Roberts

Comentários

Mensagens populares