"O ESPÍRITO DA COLMEIA"

Na história do cinema, esse estilhaço da grande explosão tecnológica, tudo se passou demasiado depressa. Muito provavelmente, o século XXI já não permite que se viva a situação proposta em “O espírito da colmeia”: a descoberta da sala de cinema já não constitui, na vida de uma criança, uma exceção suficientemente expressiva para poder nela abrir o caminho de uma aventura de pensamento. Não quer isto dizer que o convívio com o omnipresente audiovisual (na televisão, no computador, no telemóvel…) não comporte o seu leque de epifanias e supresas outras. Com certeza que sim, haverá quem se interesse por isso. Todavia, na Espanha de 1940, ir ao cinema significava sair de casa, sair da esfera escolar, sair do espectro genérico da cultura repressiva do franquismo, e experimentar uma verdadeira alternativa afetiva e intelectual (ainda que essa experiência se pudesse encontrar demasiado cifrada para poder ser lida imediata e literalmente). Falou-se do século XXI, mas, em 1973, data da estreia da obra-prima ficcional de Víctor Erice, o próprio realizador já tinha comprado o seu primeiro aparelho televisivo...
Há festa numa aldeia: uma trupe de projecionistas itinerantes vem mostrar em Hoyuelos o filme “Frankenstein” de James Whale (um clássico de terror hollywoodiano). Segundo Carmen Arocena, a sequência da velha que apregoa essa mostra cinematográfica documenta uma forma de comunicação rural que se encontra perdida. Ora, se é um documento, ele parece hoje de tal modo anterior ao contexto epocal do filme, que apresenta a beleza das coisas meramente adivinhadas. Pois, a despeito do inesgotável talento de Erice para a reconstituição histórica (a sua disponibilidade para o mais pequeno rangido que uma época possa reivindicar como endémico), o passado para onde ele nos transporta é sobretudo mítico. Enquanto vê os personagens de “O espírito da colmeia” a verem o “Frankenstein”, o espetador aproxima-se do ponto de vista do camponês nada habituado aos prodígios tecnológicos do entretenimento da cidade, aproxima-se do ponto de vista lendário da criança – aberto de par em par.
Em todo o caso, os olhos das crianças não são todos iguais. Isabel tem um pouco mais de idade que a sua irmã Ana. E como nestas idades cada ano vale um século de progresso, essa pequena diferença chega para que ela já consiga distinguir com clareza a realidade da ficção e para que esteja ciente de que tudo o que se vê num filme é a fingir. Para além do mais, Isabel apresenta o caráter de quem, pelo menos para já, pouco ou nada leva a sério. Ana, pelo contrário, é profundamente inquietada por essas imagens em movimento narrando a história de um monstro criado em laboratório, que mata por inocência e morre por incompreensão. Note-se que esta diferença entre o consumidor de entretenimento e o cinéfilo não é mera questão de estatuto: as duas irmãs, que no início do filme estão muito próximas afetivamente, acabam por romper esse laço no momento em que Isabel utiliza Ana para brincar com a morte, precisamente o assunto que o “Frankenstein” impusera à criança mais nova, quando esta ainda não o podia domesticar por via da compreensão.
A cena na qual Ana se recusa a falar com Isabel no quarto onde haviam partilhado tantas conversas secretas, ecoa o plano em que a mãe das meninas finge estar a dormir, no momento em que o marido se prepara para entrar no leito comum. Esse é um plano magistral, que faz depender todo o seu sentido e toda a sua emoção dum mero fechar e abrir de olhos (o Dreyer de “A paixão de Joana d’Arc” tê-lo-ia apreciado). Mas importa sobretudo juntá-lo a todos os outros indícios que subtilmente revelam o profundo isolamento das figuras parentais. Se eles são ainda coabitantes, os seus corações já não estão em diálogo. Fernando é uma espécie de misantropo, Teresa está encerrada na nostalgia. Ele gasta as noites na escrita de um diário, ela envia cartas a uma personagem qualquer que, no seu passado, teria sido causa de uma felicidade verdadeira. Exatamente como as crianças não conhecem as razões desta desolação, também o espetador só as pode deduzir. No entanto, a epístola de Teresa a cujo conteúdo este tem acesso, revela o estado de ruína psicológica do povo espanhol, quando tão poucos anos tinham decorrido após a terrível guerra civil e o país estava sufocado pela ditadura.
Se é num comboio que a mãe deposita uma missiva destinada à tal pessoa que nela ocupa o lugar emocional em princípio dedicado ao marido, é também esse meio de transporte (parente tecnológico do cinema) que um dia traz a Hoyuelos um dissidente político, ferido e em fuga. E, por um desses acasos incalculáveis que levam a que a ficção de um sentido supere a realidade do absurdo, a pequena Ana encontra o fugitivo. O pai tinha-lhe dito que, quando não se sabe se um cogumelo é inofensivo ou venenoso, manda a precaução que este fique por colher. Mas Ana vai construir com o foragido uma breve relação de proximidade que ela acredita ser semelhante ao encontro do monstro com uma menina no filme “Frankenstein”. Traz-lhe, aliás, coisas que pertencem ao seu próprio pai: o casaco, o relógio musical, mel… A criança tem uma noção imprecisa do significado daquele monstro de quem se tornou amiga, mas sente com convicção que ele é o início, perigoso mas desejado, de um entendimento verdadeiro da vida que desafia a instrução superprotetora da figura paterna.
Quando um conjunto de indícios levam Ana a perceber que o fugitivo foi assassinado (e que o seu pai desaprova toda a sua aventura), ela foge de casa. Entre a morte incompreensível, mas emocionalmente avassaladora, aprendida na sessão de cinema e a falta de conceitos para conseguir decifrar a relação dos acontecimentos reais com o que vira no ecrã, Ana entra em desespero e parece quase ceder à tentação do suicídio. É claro que a criança é recuperada – o medo de a perder consegue mesmo provocar a reunião da célula familiar. Sim, há aqui uma ode ao poder de amor que irradia de toda a criança! Mas note-se que, no filme “O sul”, realizado dez anos mais tarde, Erice revela que tal potência tem um prazo…. E em todo o caso, a intuição de que terá entrevisto algo demasiado monstruoso para poder ser processado pela inocência poderá ter comprometido o caráter de Ana para sempre. Será que, à semelhança do poema que ouvira ler na escola, Ana caiu onde quem cai já não se pode levantar?
As aprendizagens determinantes são as aprendizagens traumáticas, as inexprimíveis. De qualquer modo, aquilo de que uma personagem se apercebe imediatamente não coincide com a visão mais alargada do espetador do filme. Pois este vê que a explicação que Isabel fornece a Ana sobre o mistério do monstro cinematográfico é uma explicação de índole religiosa. E vê também que, quando se transita do ecrã para o real, o suposto espírito fantasiado por uma mente pueril se revela afinal corpóreo, ou seja, morre. E ainda vê que a única hipótese que lhe proporcionam de uma câmara-ardente é a sala da junta de freguesia onde o “Frankenstein” fora projetado e onde agora as autoridades do regime parecem alheias aos problemas religiosos anunciados na introdução desse filme. Na magnitude das entrelinhas de “O espírito da colmeia”, paira portanto a suposição de que o fim da infância civilizacional coincide com a tomada de consciência de que os monstros que a humanidade produz não são espirituais, mas sim políticos. Não será por acaso que, quando Erice reencontra Ana Torrent (num pequeno apontamento incluído no projeto coletivo “3.11 Sense of home”, de 2011), a filma como uma atriz que vai assumir o papel de “Antígona” numa atitude de militância contra a cultura da morte. É uma conjetura assaz válida sobre o que poderia ter sido o futuro da menina Ana…
Mas será que, quando o ecrã exibe a sociedade humana, o olhar do espetador é capaz de visceralmente perceber que ela tem um funcionamento tão implacável como uma colmeia? Será o cinema capaz de mostrar com eficácia que, se a sociedade engendra os seus espíritos polémicos, a única resposta que lhes dá é a aniquilação? E ainda que a colmeia se exprime dentro de cada casa, no teor das relações patológicas que corrompem a dinâmica de cada pequeno grupo? O crítico Serge Daney escreveu um texto célebre (“La rampe”) onde revelou o desassossego da criança incapaz de preencher as elipses do cinema dito clássico, mesmo quando os referentes reais se podiam podia observar, a olho nu, dentro da própria sala de projeção… Aliás, a ideia de que os problemas filosóficos descambam sempre em problemas políticos já se encontra sugerida no “Frankenstein” de James Whale. Mas há nele tanto barulho do aparentemente explícito, tanto barulho das normas da ficção e do espetáculo (aquele tão injustificado happy end…), que a metáfora da colmeia se revela muito mais clara no silêncio críptico da obra de Erice. Não é um paradoxo.
O realizador espanhol sabe que o seu público-alvo não é infantil. E, conforme já foi dito, sabe também que não lhe pode devolver uma experiência semelhante à do encontro de Ana com a sala de cinema (ou à sua própria experiência cinéfila). Mas, enquanto autor crítico das formas com que a história tentou cristalizar o ser do cinema, enquanto autor moderno, ele busca estratégias de eloquência que equivalham a imperativos de honestidade. Resistindo a fazer romances de cavalaria ou a ensandecer o espetador com a chantagem do medo (que é o que de certo modo acontece à sua quixotesca protagonista), Erice trabalha um tipo de encenação capaz de restituir a evidência da raridade a todos os seres filmados, como se estes ainda não tivessem sido contaminados pela repetitividade inconsequente que traz o cansaço da perceção adulta. A poética do vazio, vazio visual e sonoro que magistralmente rodeia cada objeto encenado, é menos próxima de um deserto de Antonioni que da reposição tarkovskiana da disponibilidade cognitiva e emocional da criança. Poucas vezes terá o ecrã sido tão despoluído como aqui, poucas vezes terá o vítreo conseguido coincidir com tanta subtileza. Assim como Ana aprende muito mais quando escuta os carris do caminho-de-ferro do que na escola, também o espetador vê com mais intensidade aquilo que lhe é rebeldemente segredado.
O tom do cinema de Erice é o de uma espécie de musica callada que desafia o estereótipo do ser espanhol. Há, de facto, uma grande diferença entre ouvir o nosso nome gritado por quem julga que nos perdeu e (no processo de libertação da nossa identidade) dizê-lo baixinho para nós mesmos: “Sou Ana! Sou Ana!”



Título original: "El espíritu de la colmena"
Data de estreia: 1973
Realização: Víctor Erice (1940-?)
Interpretação: Ana Torrent, Isabel Tellería, Fernando Fernán Gómez, Teresa Gimpera

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