"VIDROS PARTIDOS"

A esclerose do tecido da infância, a escola que de repente se torna bela porque um monstro a raptou, a falta de saúde para continuar a empurrar a pedra pela montanha acima, a falta de ânimo para contemplar a vida material a regressar sempre ao ponto de partida… São conhecidos os nomes de todos os ossos do ofício mal-aventurado. Mas quem se pode dar ao luxo de ser invertebrado neste mundo onde a palavra de ordem continua a ser sobreviver?
O espanhol Víctor Erice veio rodar um filme em Portugal (nem só de amigos americanos se pinta a sétima das artes). Reuniu-se com um conjunto de pessoas que durante muitos anos trabalharam na Fábrica de Fiação e Tecidos do Rio Vizela (concelho de Santo Tirso), encerrada em 2002 ao fim de mais de um século e meio de produção contínua e significativa. Ouviu o que elas tinham para dizer sobre a vivência operária, suas consequências e mutações, e convocou-as para a experiência de fazer cinema. Ou seja…
Erice condensou todos esses depoimentos informais num conjunto de textos literariamente elaborados para evidenciarem a forma de… depoimentos. A versão última dos monólogos foi negociada com aqueles que lhes podiam garantir o rigor vivencial (e até verbal). Cada texto foi atribuído a um ex-operário que tenha manifestado o desejo de partilhar a sua imagem com o futuro espetador. Ocultou-se qualquer informação sobre a eventual coincidência entre o depoimento e a vida concreta de quem o diz perante a câmara. E estes atores amadores trabalharam a sua performance com o mesmo tipo de processo que estrutura uma apresentação dramática.
O dispositivo apresenta vantagens inequívocas, desde a recusa de qualquer exibicionismo confessional até à oferenda de uma experiência de puro trabalho lúdico a quem teve uma história laboral completamente diversa. Mas é com a sabedoria do grande cinéfilo que Erice se aproxima de algumas das virtualidades mais delicadas do cinema dito (e até maldito) português. Da ausência de profissionalismo dos seus intérpretes, ele recebe a modéstia, a melancolia e a dignidade cicatrizadas no modo como muitos dos indivíduos desfavorecidos se apresentam ao mundo. Recebe também o documento autêntico das maneiras de falar peculiares que caracterizam determinados grupos sociais e regionais. Tudo isto sem precisar de pagar fortunas injustificáveis ou promessas (de prémios) a stars vagamente entediadas. Mas, sobretudo ao pôr à vista o relativo desconforto com que cada intérprete diz o seu texto, Erice faz com que as suas hesitações de memorização deem corpo e eco à dificuldade generalizada de se guardar uma reminiscência da vida da fábrica. É francamente extraordinário o momento em que fala pela primeira vez a personagem Inês Ferreira Gomes, quando, para além dessa questão da memória por um triz, se torna pungente a dificuldade de encontrar palavras para exprimir o significado profundo de uma condição como a sua.
Surgirá também o depoimento do ator profissional Valdemar Santos a lamentar o desemprego na sua própria atividade (último passo para que se diluam hierarquias fantasiosas entre artista e operário). Ao evocar o trecho de um papel teatral que assumiu no passado, segundo ele inspirado na figura de um filho de um antigo proprietário da fábrica que abandonou a sua posição de privilégio para ir viver o destino dos oprimidos, ele aproxima-se de uma teatralidade exuberante que parece muito menos genuína que a dos outros participantes do filme. Maneira mais ou menos consciente, mas infinitamente subtil, de mostrar a certeza amarga de que um berço, mesmo quando vai deixando de reluzir, é de ouro até ao féretro. Estratégias semelhantes a estas se podem encontrar nas artes de Manoel de Oliveira e Pedro Costa, que assinaram dois dos outros episódios do projeto coletivo (“Centro histórico”) no qual esta curta-metragem de Erice se insere.
Uma vez esmiuçada a forma de vida permitida por um labor como o da Fábrica dos Vidros Partidos (assim conhecida em 2012), essa experiência é utilizada como o tipo de saber adequado para o comentário a uma fotografia que mostra operários de um tempo anterior, sentados nas mesas do refeitório fabril. Estamos no terreno inconfundível do autor espanhol: ele põe-nos a ver alguém que está a ver. No entanto, a poesia da aprendizagem que dirige “O espírito da colmeia” para a eventual coincidência de imaginário com o seu espetador, está aqui reduzida a uma didática mais enxuta. As pessoas filmadas falam apenas o suficiente para o verbo se tornar desnecessário. Pois, quando no fim do filme, observamos a fotografia em detalhe, basta a eloquência abstrata da música para nós já sabermos (demasiado bem) o que em concreto nos estão a dizer as pessoas fotografadas.
Valerá a pena jogar o jogo do excesso de informação? Ou é melhor considerar uma imagem e tentar inquiri-la até ela nos devolver um pouco de conhecimento? Às 11h da manhã de um dia de semana, Erice foi a um velho café da cidade de Guimarães e reparou que o lugar estava repleto de homens em idade laboral, ociosamente contemplando a chuva. A cena pareceu-lhe representativa do momento histórico que se estava a viver na região do Vale do Ave. Assim surgiu o projeto de "Vidros partidos", assim se salvam Capitais da Cultura da pompa e irrelevância.



Data de estreia: 2012
Realização: Víctor Erice (1940-?)

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