"QUARESMA"

Despidos e escondidos no que parece ser um lago, uma rapariga e um rapaz desfrutam da alegria sensual enquanto o excêntrico tio dela passa de barco, lendo o que diz a lua num texto de García Lorca: “Quero entrar! Venho gelada / por paredes e cristais! / Abri telhados e peitos / onde me possa aquecer! / Tenho frio! As minhas cinzas / de sonolentos metais / buscam a crista do fogo / pelos montes, pelas ruas.” Passa-se isto no filme “Peixe Lua” (2000).
Perseguido por talvez ter cometido um crime passional, um rapaz é provisoriamente salvo da polícia por um grupo de cante alentejano que, decerto solidário com a matéria visceral da existência, entoa os seguintes versos: “O sol é que alegra o dia / Pela manhã quando nasce / Ai de nós o que seria / Se o sol um dia faltasse.” Passa-se isto no filme “Zéfiro” (1993).
Há uma espécie de candura na maneira como José Álvaro Morais tenta colocar a tristeza e a alegria em lugares muito semelhantes aos que elas ocupam na infância. Como a criança se faz difícil para ingerir o alimento sem sabor ou para desperdiçar o seu tempo em livros que ninguém lhe iluminou, o cineasta mostra que não tem vontade nenhuma de aceitar a desolação. Mesmo nenhuma! Se é certo que, na terra dos artistas, quem não cultiva uma pose de náusea se arrisca a ficar fora da corte, esse problema não interessa nem ao menino Jesus: Morais sabe bem que é precisamente a vocação solar que o obriga a reagir com lucidez à violência do mundo. O seu discurso não parou, portanto, no sul de “Peixe Lua”, esse lugar quase imaginário onde um sacerdote se permitia encenar textos do Lorca e projetar filmes do Pasolini. Não, o autor só aceitou deixar o mundo depois de, no filme “Quaresma”, ter ao mundo legado a mais triste imagem do norte, a imagem de uma democracia na qual a liberdade não se desenvolveu como uma palavra que pudesse fazer parte de um poema.
A ensonada Covilhã da infância do realizador tem as costas largas o suficiente para arcar com esta impressão tão lírica quanto política (ainda que essa terra apareça centrada no mapa de Portugal, Morais guardou na memória a convicção de que ela pertence ao espírito sociológico do norte do país). David, o personagem principal de “Quaresma”, partilha este passado biográfico com o autor. Ora, antes de emigrar para a Dinamarca, ele é obrigado a regressar à Covilhã por causa de um funeral de família. O que acontece no filme é apenas isto: apesar de se estar a sentenciar a um norte cada mais profundo, David parece só tomar plena consciência da dimensão disfórica desse polo existencial quando, durante a tal visita, conhece a personagem Ana, o bobo consumado da filmografia de Morais.
Ana não é um bobo porque faça rir (aliás, no filme homónimo de 1987, a comicidade era o menos persistente dos tons múltiplos propostos pelo cineasta). De acordo com Alexandre Herculano, o bobo era a figura que revelava, à corte medieval, a mediocridade das relações que a compunham. É o que fazem Francisco, o tio Nini e Ana, as personagens medulares de cada uma das ficções de Morais ("O bobo", "Peixe Lua" e "Quaresma", respetivamente). Mas fazem-no em modos e graus muito diversos, claro. Através do primeiro, que é encenador no período de reversão revolucionária após o 25 de Abril, Morais define o artista (define-se a si mesmo!) como figura sempre crítica e polémica. O tio Nini, tão falso monstro quanto falso aristocrata, ao zombar da facilidade com que os cidadãos da democracia abdicam espontaneamente da liberdade, assume claramente a função de um bobo perante o capitalismo triunfante. Já o incómodo trazido por Ana talvez ainda não esteja previsto na última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: ela simplesmente gostaria de poder brincar com as outras pessoas.
O problema é que as outras pessoas não podem responder a tal solicitação, pois assumiram a responsabilidade de cuidarem daqueles que, eles sim, têm licença para brincar. Sempre muito rigoroso nos processos de casting, o realizador faz a dupla protagonista de “O bobo” reaparecer em “Quaresma” como um casal cuja parentalidade fez perder toda a graça da juventude (o grande momento de Paula Guedes é a manifestação de desespero perante o cadáver do filho). A cena assustadora em que Ana, entretanto levada para a Dinamarca por David, finge que deixou cair a bebé dele por uma escadaria num gesto de pura e irresponsável brincadeira, define todo o sentido do filme: Morais mostra-se tão realista quanto o Kazan de “O esplendor na relva”, mas, ao contrário deste, o seu coração está com a personagem sonhadora. Ou seja, Ana incomoda, Ana fascina, porque, ainda que toda a gente perceba que não se pode viver a vida toda como se esta fosse uma aventura, ninguém consegue fazer o luto dessa impossibilidade. Afinal, talvez não haja nada mais triste do que viver a vida como ela tem de ser vivida.
Beatriz Batarda afirmou que a personagem Ana é o ser que ela própria nunca se permitiria mostrar. José Álvaro Morais convivia com a atriz desde que ela era criança e terá utilizado todo o conhecimento da sua pessoa para a pintar de forma, digamos, animal (como de modo muito diverso fez com a timorata Vieira da Silva no fim do documentário que lhe dedicou). Se, nos anteriores filmes do realizador, a criatividade dependia do fazer-complexo da encenação, a brincadeira foi aqui entregue nas mãos frágeis de um ser humano (até a música foi composta pelo então marido de Batarda, o pianista Bernardo Sassetti). Não se tratou já de escolher entre o corpo fabricado de Marlene Dietrich e o corpo do desempregado anónimo que vagueava pelas ruas de Roma após a Segunda Guerra Mundial (velha questão da sétima arte). Ana é uma sucessora da Gelsomina de Fellini, é um corpo que, na sua mescla inextricável de real e ficção, controverte o poder de evidência com que os comportamentos ditos normais se costumam apresentar.
“Quaresma” é um filme depurado, isento do barroco de flashbacks com que Morais assinou os seus filmes anteriores. Nele, contudo, a reflexão sobre o passado é afinada, como se o cineasta não quisesse deixar quaisquer equívocos sobre o seu tema mais obsessivo e original. Pois, se é certo que David encontra Ana na terra onde foi criança, a verdade é que ele não a conheceu nessa fase inicial da vida. O que significa que, se todo o grande afeto convoca algo antigo em quem o sente (algo que precisamente remete para a infância), não é necessário que quem o provoca faça parte do passado factual. Nós apaixonamo-nos por quem parece conseguir reescrever a nossa história emotiva desde o seu início. A tia Maria Ester talvez esteja enganada quando se mostra nostálgica: ninguém gostaria de voltar para o seu passado, mas sim para a revolução do seu passado. Assim já era em “O bobo”, quando a ligação de Portugal ao mar poderia fornecer uma chave nova para o país da Terceira República. As ruínas podem ser os alicerces experimentais do futuro.
Herculano foi claro quando caracterizou o bobo medieval: a despeito da sua capacidade desestabilizadora, ele não tinha poder nenhum. Passadas as breves horas em que o seu sarcasmo era tolerado, ele voltava “à obscuridade de um animal doméstico”. Em acordo com esta perspetiva, o final de “Quaresma” não se salda por uma ressurreição. A conclusão do filme (Ana é afastada de David…) sinaliza apenas o alívio resultante da expulsão do elemento polémico, do elemento luminoso que obrigava o protagonista a duvidar da plenitude da sua existência. Dúvida desagradável que é preciso abafar a todo o custo: no reino do norte absoluto, talvez não fique nenhuma mancha do sangue de Ana.
Quem vive numa democracia capitalista não costuma questionar a porção de liberdade que lhe é conferida. O cidadão consente que lhe esmaguem a exigência, o modelo civilizacional parece não ter alternativa. O vento que, no início “Quaresma”, tenta acordar o letárgico David, no fim encontra-se domesticado para efeitos de pura eficácia económica. O burguês sabe amar os filhos, sim, mas pouco mais.

Nota: A tradução do excerto do texto de Federico García Lorca é da responsabilidade do poeta A. M. Pires Cabral.


Data de estreia: 2003
Realização: José Álvaro Morais (1943-2004)
Interpretação: Beatriz Batarda, Filipe Cary, Rita Durão, Ricardo Aibéo

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