"O BOBO"

De vez em quando, a história conhece a figura da revolução. Quando isso acontece, a mesma história aconselha o revolucionário (embrenhado em piruetas de futuro) a perguntar-se imediatamente: e agora, o que fazer com o passado? Pois qualquer tábula rasa se revelará tão ineficaz quanto a tentativa de recalcamento do trauma fundador de uma psicologia individual…
É essa a pergunta que José Álvaro Morais coloca na sua primeira ficção. A ação decorre em 1978, quatro anos após a Revolução dos Cravos. Francisco, ator e encenador oriundo de uma família da alta sociedade, está a ensaiar uma adaptação teatral do romance “O bobo” do escritor oitocentista Alexandre Herculano (percebe-se que a estreia do espetáculo está para breve). Se Portugal ainda possuía um império colonial na altura em que o romance foi escrito, já não havia quaisquer dúvidas sobre a menoridade lusitana perante outras potências europeias com percurso idêntico, e já se percebera que tal império não seria eterno (a independência do Brasil tinha sido reconhecida em 1825). À boa maneira romântica, Herculano defende que, num país pobre, fraco e humilhado, “o mister de recordar o passado é uma espécie de magistratura moral”. E, de facto, o seu título propõe uma ficção que acompanha os dias que precederam a gloriosa batalha de São Mamede, em 1128, quando Dom Afonso Henriques retirou à sua mãe, Dona Teresa (e ao amante desta, o galego Conde de Trava) o poder do Condado Portucalense, e assim se tornou o primeiro rei de uma nova nação, Portugal. Ora, o filme de Morais propõe um diálogo entre o rescaldo da mais recente revolução portuguesa e a mítica fundação desse país, que nada tem a ver a postura do intermediário Herculano.
Francisco tem uma relação amorosa problemática com Rita, também atriz. Aquilo que incomoda Rita é o facto de a sua parelha não poder ser insular, o que a obriga a conviver com as relações demasiado intensas que Francisco consolidou antes de a ter conhecido. A inevitável sogra, claro, e etc. Mas sobretudo João, o grande amigo de infância de Francisco. Entre os dois rapazes formara-se uma espécie de fraternidade das armas muito diferente da que aliara Afonso Henriques ao seu amigo Egas Moniz Coelho (figura imaginária, criada por Herculano). Pois, se os personagens medievais selaram a sua irmandade ao serem proclamados cavaleiros (com todos os ideais nobres implicados nessa condição), é o facto de o pai de Francisco se ter suicidado no momento em que, por pura traquinice, Francisco e João estavam a tentar apoderar-se da arma da família, que entre eles forja um elo de solidariedade impossível de dissolver. 
A narrativa inspirada em Herculano termina no momento em que a nova nação se funda. Já a trama contemporânea encontra o seu paralelo conclusivo no trágico assassinato de João. Um acontecimento sumamente positivo e outro claramente negativo parecem equivaler-se. Porquê? Talvez porque não se saiba muito bem o que é mais antigo, se uma amizade ou se um país, e só a morte de João tenha conseguido libertar (um pouco) Francisco para ele poder sair do seu vicioso triângulo afetivo. E talvez porque uma revolução com a envergadura do 25 de Abril tenha produzido uma outra hipótese de leitura do sentimento patriótico. Prepara-se, leitor, para uma bobagem...
Herculano define a essência da portugalidade como predestinação para a gesta dos Descobrimentos (a história mundial teria sido de facto outra sem a intervenção dos lusíadas). Levando até ao passado a revolução (mas não qualquer negacionismo revisionista…), pode dizer-se que um país assim definido está talhado para ser simplesmente indefinível. O bobo que, na ficção histórica, desvela passagens secretas, na mise en scène de José Álvaro Morais abre a cortina que revela uma imagem ingénua do mar. Fá-lo no começo e fá-lo de novo no fim, posições tão preciosas para o desejo de interpretação. Esse mar lírico traz consigo uma potência filosófica e política (Jacques Lemière também defende que, neste autor, a antropologia do país é inseparável da poesia): o Portugal sugerido em “O bobo”, tão belo como a nação frustrada de “Non, ou a vã glória de mandar”, é a hipótese de um lugar que não descanse à sombra de um território conceptual, que vagueie com maior ou menor rumo, que flua e reflua como as marés, que quebre como as ondas, que se perca, reencontre e torne a perder, é um lugar para sempre em ensaio, um lugar que a revolução, a despeito da perda da sua integridade inicial, deixou razoavelmente em aberto…
A sequência derradeira do filme, magistral discussão de um par com marujos ao fundo, mostra precisamente isso: Francisco critica a excessiva solidez de convicções de Rita (cujo sobrenome é Portugal), mas tanto ele como ela (e os próprios marujos) parecem não querer tomar uma decisão demasiado definitiva quanto à possibilidade de partirem, ficarem, voltarem para casa, passearem por Lisboa… A dinâmica do par, aquilo que por um fio os une, é esse nomadismo espiritual. Numa entrevista, José Álvaro Morais comparou assim este casal contemporâneo com o casal do romance de Herculano: “um amor provavelmente impossível hoje contra um amor óbvia e irremediavelmente impossível antes”. É o advérbio que faz a diferença.
Dulce (personagem imaginária), uma dama da corte de Dona Teresa, e Egas, o já referido amigo de Afonso Henriques, compõem o par medieval. Quando o pérfido Conde de Trava captura Egas, faz chantagem com a pobre Dulce: se ela se casar com o alferes-mor Garcia Bermudes (ainda outra personagem imaginária), ele poupará a vida do seu amado. Dulce não tem outro remédio senão aceitar tão terrível proposta. No entanto quando ela revela a Egas tudo isto que aconteceu, ele repudia-a de forma abrupta. As ideias que Egas acalenta (a pureza suposta na figura feminina, a fidelidade sobrepondo-se à sobrevivência) são demasiado rígidas, demasiado fixas. Se o par estava condenado pela situação política, a interpretação do significado profundo desse falhanço foi impedida pela mentalidade de Egas. E tudo terminará numa catadupa de mortes!
A discussão sobre a maleabilidade dos conceitos pode ser apreendida num outro paralelo. Se o Conde de Trava gosta de encher a boca com o grande vocábulo “traição” quando se refere àqueles que se vão aliando ao rebelde Afonso Henriques, o mais provável é que o espetador (orgulhoso de ser) português não o acompanhe em tal caracterização. Por outro lado, na parte contemporânea do filme, acompanhamos o esforço do personagem João para vender umas armas do tempo em que fora militante de esquerda a uns obscuros criminosos. Rita sente-se incomodada com essa volubilidade injustificável. Francisco defende-o, como sempre, levando a fraternidade das armas até ao limiar da perversidade. O facto de uma chance de obter lucro não considerar nenhum outro tipo de valor para além desse mesmo lucro mostra como, em 1978, o capitalismo já se sobrepunha a qualquer veleidade socialista. Uma ideologia de expansão imparável do lucro precisa de reduzir os pruridos morais sobre o que deve ou não deve ser comercializado. Mas pode-se qualificar João como um traidor? Ao espetador nunca serão dadas motivações, válidas ou inválidas, para tal reviravolta, e o seu assassinato deve-se menos a ela do que  à forma marginal como a homossexualidade era vivida na época. Isto desassossega, mas não incita ao julgamento simplista.
Aliás, se a imaginação romanesca deste autor gravita sempre em torno daquelas demasias passionais que a qualquer momento podem descambar em crime, há uma grande diferença entre a faca literal que neste filme mata João e a faca tornada verbo poético em “Peixe Lua” (2000), ou entre a mortandade que rodeia Dulce na última evocação de Herculano e o sangue espiritual que a personagem Ana tem de carregar em “Quaresma” (2003). Morais parece defender que tal sublimação da violência não se obtém com formas de vigilância das condutas, mas precisamente recorrendo à emancipação do pensamento: em “Zéfiro” (1993), não é a polícia que tem sucesso na captura do homicida passional, mas é o teórico da tolerância que, como se pudesse revolucionar o passado, consegue impedir o homicídio de acontecer. E quais são os atores que compõem o par assim liberto, nesse inclassificável documentário dos anos noventa? Precisamente Fernando Heitor e Paula Guedes, esses que haviam dado corpo ao Francisco e à Rita, o par-além-da-faca, o par-em-discussão de “O bobo”.
“O bobo” é então um filme que enfrenta poeticamente o passado para demonstrar a ineficácia de alguns conceitos ancestrais para a compreensão de um momento histórico que o futuro acelerou. E assim, a uma ética rígida da não-traição, José Álvaro Morais responde com uma fulgurante estética da transição. Note-se que, se o filme tem uma trama narrativa extremamente precisa, ela é fornecida ao espetador à maneira de um quebra-cabeças. Diz Saguenail que esta obra-prima é um tour de force que reconcilia a estrutura fragmentada do romanesco moderno com a densidade linear do épico (ou mesmo do trágico) da tradição clássica. Com toda a franqueza, é pouco provável que, num primeiro visionamento, o espetador consiga perceber a estória muito concreta que “O bobo” conta. Mas, de certeza, pode desde logo deixar-se perder no sumo prazer da transição (da deriva marinha) que o cineasta trabalha como se fosse um virtuoso da filigrana:

Transição entre artes – o romance de Herculano, cuja prosa vai sendo revelada com exatidão ao longo do filme, surge transformado numa peça de teatro; mas a mestiçagem é ampliada pelo facto de o palco do espetáculo ser um estúdio de cinema e de os seus ensaios serem encenados como se de uma rodagem cinematográfica se tratasse. Morais não trai propriamente o texto de Herculano, mas, fazendo-o transitar para a multiplicidade do presente, realça por contraste o temperamento da sua beleza literária.

Transição entre géneros de filme – da câmara minnelliana coreografando os momentos literários à comédia de vigaristas, do diário de bordo (que mostra João como um aventureiro sem freio) à paródia de filme antigo (que revela a Penélope latente em Rita), do teatrinho da vida conjugal à imoderação operática, do kitsch marujo à iconografia para-medieva, o verdadeiro tom que “O bobo” conhece é o da velocidade com que constantemente muda de tom.

Transição entre épocas – 1978, a viagem que João fez com o amigo Andy (talvez seu amante…), a infância de Francisco e João, o verbo do século XIX, 1128… Robert Bresson estava certo quando acusava muitos filmes de confundirem movimento com mera agitação. Mas não há qualquer motivo para que essa intuição constitua uma doxa. Numa cinematografia como a portuguesa, cujas maiores façanhas se baseiam no ritmo vagaroso e no rigor estático, “O bobo”, que é um filme sobremaneira livre, restitui ao movimento a capacidade de nos fazer viajar pelo tempo.

Transição entre pessoas – o triângulo de protagonistas é ladeado por uma efervescência de personagens, muitas delas aparecendo para logo desaparecerem, muitas delas aparecendo apenas para sinalizarem os bufões e os boémios (os bobos…) da Lisboa pós-revolucionária, todas servindo para que o autor homossexual se mostre apto a pressentir as ameaças ao desejo de insularidade e perenidade que compõem a mitologia do par heterossexual. Se Murnau lamentava tais ameaças, Morais parece celebrá-las como necessárias à definição do amor moderno.

Transição entre tipos de intérprete, entre cores, músicas, etc.

Diz-se que “O bobo” é o filme do desencanto da geração que atingiu a maturidade após o 25 de Abril. Isso é parcialmente certo (neste texto já se aludiu ao triunfo do comércio sobre a política). Mas entreveem-se nele muitas brechas por onde a possibilidade consegue passar. Afinal, o polícia é interpretado por Raul Solnado, o grande bobo do Portugal da época da rodagem do filme. Afinal, a casa de uma boa família do Estoril está invadida por atores e por boémios (num paralelo com a vida do próprio realizador, que se desviou de uma respeitável carreira na medicina). Afinal, os ensaios de teatro são perturbados pela visceralidade toda da existência que ocorre fora do estúdio. E tudo isso é bem diferente do que veremos em “Quaresma”, o título derradeiro de Morais, quando, ao contemplarmos o mar escuro e revolto da Dinamarca como pano de fundo para o sofrimento da protagonista, sentirmos que o pensamento, para ser libertador, já não pode ser exercitado com candura.



Data de estreia em festival: 1987
Realização: José Álvaro Morais (1943-2004)
Interpretação: Fernando Heitor, Paula Guedes, Luís Lucas, Luís Miguel Cintra, Isabel Ruth, Miguel de Lucena, Luisa Marqués. Raul Solnado



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