"O CÉU GIRA"

Quem poderá começar a preencher o seu curriculum vitae com o acaso, privilégio e extravagância de ter sido o último bebé a nascer num dado lugar? Assim aconteceu com a cineasta Mercedes Álvarez e com Aldealseñor, um povoado esquecido na província de Sória, em Espanha. “O céu gira” é o diário dessa filha que um dia regressa para filmar o definhamento pródigo da sua terra natal: fazê-lo era uma oportunidade cívica e um dever afetivo.
Não quer isto dizer que os da casa façam milagres de compreensão. Pois nem sempre o desaparecimento aparece de forma justa diante dos olhos, tão cegos que eles estão pela facilidade com que julgam ver. É preciso agir como o pintor Pello Azkera, que, desprovido do sentido que dá sentido à sua arte, tem agora de confiar em algo mais que a visão para encontrar imagens. O pintor tem de tatear, o que, na dinâmica específica da fabricação de imagens em movimento, se traduz na necessidade de tempo de vivência e de rodagem. Álvarez atribuiu-se um ano inteiro para tentar ir percebendo, com franqueza e argúcia, a realidade que tinha diante dos olhos. E, se este dar-se tempo pode até parecer uma forma de luxo, ele é apenas aquilo que os aldeões sempre se deram no seu modo de vida tão antigo que parecia destinado a ser eterno.
A distração é universal. Os futuros hóspedes do hotel requintado que se está a construir à margem da memória de Aldealseñor por certo hão de ignorar a condição de necrópole que define a ruína de ulmeiro que se ergue à sua frente. Mas, na verdade, ninguém repara que todos os lugares são cemitérios de alguma coisa, que em todos os lugares há legados de mundos que já morreram ou que estão a morrer. A peculiaridade biográfica e artística de Álvarez permite-lhe ser sensível a todos esses graus de maior ou menor extinção que compõem uma paisagem. Pois não está tão vivo um pastor (com todo o arcaísmo do seu trabalho juridicamente negligenciado) quanto os aerogeradores que com ele podem partilhar um enquadramento sem efeitos especiais. A montagem-discurso do filme dá a ver uma espécie de grande escala funérea que se estende desde o museu fóssil dos dinossauros até ao sono daquele aldeão tão alheio à propaganda política como ao réquiem que os insetos já lhe entoam. Mesmo a mais viva das ovelhas pode afinal ser a relíquia de uma civilização milenar que foi há muito expulsa da paisagem. Com a lucidez que a paciência confere, as mortes da aldeia vão saindo da névoa exatamente como do solo agrícola por vezes saem restos de antigas cidades enterradas.
Álvarez não filma, portanto, apenas o despovoamento da sua antiga aldeia, mas o continuum de mortes múltiplas que estratifica e define um lugar. Sem as confundir. Aldealseñor não está a morrer como histórica e histericamente morreu Numância às mãos do invasor romano (ou como hão de morrer na televisão as cidades iraquianas atacadas pelo exército estado-unidense). O assassinato económico é discreto, não se vê a olho ingénuo, e até tem o pseudónimo de progresso. Mas é implacável: muito em breve, a relativa licença com que o palácio lendário ia transitando de ocupante em ocupante será sorvida pela tirania das leis e dos contratos. O seu futuro como hotel fará o cheque-mate!
Os aldeões estão a ser dizimados à maneira de quem nada tem para oferecer às dinâmicas do lucro e do poder, ou seja, estão simplesmente a ser ignorados, abandonados a uma morte lenta. Álvarez esboça o necessário lamento exigido pelo assunto, mas orienta a sua observação sobretudo para a tentativa de descoberta do tom justo com que todo esse processo de declínio está a decorrer. Pois, assim como o ulmeiro secular, em torno do qual se organizava a vitalidade antiga da aldeia, parece estar menos a morrer do que a regressar lentamente à terra, Aldealseñor vai decaindo com um ritmo equiparável àquele que sempre organizou as relações dos seus habitantes com os ciclos da natureza. Trata-se apenas do capítulo final, inelutável, iniludível, de tudo o que vive, seja uma árvore, uma pessoa ou uma comunidade. São os próprios aldeões que, ao longo do filme, vão verbalizando essa aquiescência típica de uma sabedoria tão simples quanto sensata, uma sabedoria que relega o dilema da morte para uma espécie de serenidade tautológica – a propósito deste assunto, o povo português usaria expressões como “é o que é”, ou “é a… vida”. Sim, a morte é a vida. E talvez não mereça mais filme do que isso. É, aliás, provável que Álvarez tenha sido surpreendida pela ausência de tragédia com que os homens e mulheres da terra nativa assistem ao desaparecimento do seu corpo social. Nas cidades que compuseram a biografia posterior da autora, não se sabe morrer assim. Se a cegueira galopante do pintor Pello Azkera tivesse sido registada de acordo com o ângulo tonal da vida urbana, por certo não escaparia à imaturidade pathétique, appassionata, dos mitos civilizados.
Ao contrário do que pensavam os celtiberos, o céu não nos cai em cima da cabeça, ele simplesmente gira. Mas, para quem mora em Aldealseñor, o que faz girar o céu não é a sofisticação dos aerogeradores nem a voracidade dos aviões militares. E se, com toda a certeza, se trata de um povo crente, Deus parece consumir-lhes menos atenção que a meteorologia (essencial para a gestão das suas atividades) e muito menos curiosidade que a astronomia. Mesmo quando alguém fala das estrelas como origem dos vivos e destino-bumerangue dos mortos, o discurso não parece posicionar-se para além do físico. Este céu é sobretudo o mensageiro dos ritmos justos, desses ritmos para os quais a humanidade ainda não encontrou uma alternativa que a sua Terra considere convincente.
Quando a gente do cinema filma exteriores, também tem de se regular pelos caprichos sábios do céu. Normalmente, isto significa filmar muito rápido, filmar antes que o clima mude, antes que uma certa luz se perca… Como anteriormente se referiu, Álvarez decidiu rodar de acordo com os ciclos que ainda se podem pressentir numa aldeia, mesmo que moribunda. Não só de acordo com as estações do ano, mas abraçando outras formas de repetição-e-diferença: a condução diária dos rebanhos; o fugaz retorno das conversas; os reencontros com o amigo Pello Azkera; a constante variação da luz provocada pelo movimento das nuvens, permitindo uma alternativa cinematográfica ao paisagismo estático… A feira da sétima arte ainda não entendeu que esta humildade é uma forma rigorosa de ambição. Assim como o tio Eliseo preparou tudo para que o anúncio inequívoco da sua morte fosse nada mais que o desaparecimento de uma cadeira, Álvarez socorreu-se da maior das elegâncias para conseguir arrancar algumas palavras, algumas imagens, à grande elipse existencial.


Data de estreia: 2004
Realização: Mercedes Álvarez (1966-?)

 

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