"VENERIS"

Basta uma doença ignota para que o botox do mundo estale sem apelo nem agravo. Ao remisturar o nojo do corpo corrompido com a censura do comportamento, a sida desenterrou rugas medievais das últimas duas décadas do século XX. Para dar conta subtil de tal grosseria, Regina Guimarães decidiu filmar a terceira cena do segundo ato de “O anúncio feito a Maria”, texto dramático no qual o autor francês Paul Claudel convoca uma Idade Média lendária. Na cena em causa, Jacques (Tiago) termina o seu noivado com a bela Violaine, porque, ao perceber que ela está infetada com lepra, associa essa condição patológica a uma suposta impureza da alma da rapariga.
Na proposta de Regina, nem Violaine nem Tiago falam no espaço cénico a que o texto os destinou. Ela percorre os ambientes de um edifício, sim, teatral, mas partindo da plateia e não do palco. Já a voz de Tiago aparece multiplicada por imagens de exteriores sem figura humana, como se ele não tivesse corpo, ou isso equivalesse a ter todos os corpos do mundo. Em ambos os casos, contudo, o esplendor amoroso (do teatro, da natureza) vai sendo substituído por uma poética da pedra, essa que pedra se mantém, por muito que sobre ela caia o sangue, o leite, a luz ou o musgo.
Com o garbo lírico que se lhe conhece, a autora aproxima uma questão que não é autobiográfica da sua meditação contínua em torno da conjugalidade. O seu companheiro Saguenail assume a voz do personagem Tiago, mas o sintoma mais revelador de tal infeção será a própria estrutura-base do objeto videográfico, que põe em conversa os atributos que melhor definem este casal de criadores: a imagem cinematográfica, a língua francesa e o impulso errante de Saguenail; a palavra poética, a língua portuguesa e o acolhimento tradutor de Regina.
Muitas outras oposições, menos subjetivas, se detetam na arquitetura de “Veneris” (interior/exterior; voz dentro/voz fora; corpo presente/corpo ausente; representação firme de Bustorff/declamação agitada de Saguenail; texto de Claudel/música de Messiaen; outono/inverno; Theatro Circo/Mosteiro de Tibães). Na verdade, se quase todos os filmes são avarias a partir do tema “boy meets girl”, poucos apresentam uma forma que possa ser assim diretamente classificada como heterossexual.
Violaine e Tiago falam, pois, idiomas desiguais, mas não precisam de tradução simultânea para se entenderem a um nível imediato. Isso não impede que o espetador suspeite que aquilo que decorre entre eles (ou entre toda a mulher e todo o homem que venereamente se aproximem) talvez se possa tomar menos por diálogo que por diferendo.
Enfim, do contágio é que ninguém, nada se livra. Assombrada por um órgão quimérico e alumiada por sérias candidatas a estrelas (ou pelo menos a candeias), a sala de espetáculos do Theatro Circo de Braga não se afigura menos sacra que a capela que com certeza haveria no mosteiro que lhe serve de contraparte. É inesquecível o enquadramento que muda o lustre em auréola de Violaine, quando esta fala da luz de Deus. A autora deixa-se impregnar com a beleza dos textos cristãos (o literário, mas também o musical). E sobretudo aceita pôr a mulher no lugar que se presume masculino quando se fala de dispersão erótica (o que, no caso concreto da história da sida, equivale a uma generosa provocação). A instabilidade da relação entre as propostas de enquadramento e o corpo da atriz Ana Bustorff fazem-nos sentir que, quando Vénus se solta da camisa das forças fingidas, nada é único, nada é simples, nada é claro.


Data de produção: 1993
Realização: Regina Guimarães (1957-?)
Interpretação: Ana Bustorff, Saguenail
 

Comentários

Mensagens populares