"MOURIR BEAUCOUP"

“Partir é morrer um pouco” – assim se traduz o provérbio francês que lembra que não é fácil harmonizar uma pulsão errante com a estabilidade do afeto. A voz do povo tem uma reconhecida lucidez, mas não haverá menos razão em pensar-se que, enquanto uma harmonia for apenas difícil, ela continua a ser possível por definição. Assim mostrou Saguenail que, através do cinema, podia continuar a viajar no lugar onde por amor ancorou: no belo filme “Mourir un peu” (1981-85), não era preciso mais que uma câmara filmando em baloiço para que as telhas das casas da cidade do Porto se tornassem ondas do oceano. A viagem do espírito revelava muitas cidades na cidade, ora em modo de pura possibilidade onírica, ora em jeito de reflexão política sobre o significado dos Descobrimentos portugueses (e da relação geral que o ato de filmar sempre estabelece com a cultura da América, esse suposto destino único dos viajantes da sétima arte).
Duas décadas mais tarde, um novo filme fez, desse “pouco”, “muito”. Se “Mourir un peu” elegera a “viagem” como sua preocupação central, no filme de 2004, a “morte” deixou de estar razoavelmente circunscrita à função de comparante da metáfora e tornou-se tema pleno e inequívoco. O sentido da figura de estilo foi completamente desestabilizado pela quantidade de morte em jogo. As encenações de suicídio da obra mais antiga passaram a parecer brincadeiras quando comparadas com o tom visceral da sua sequela trágica. E, se em ambos os filmes se ficciona uma catástrofe, a tempestade do primeiro não descamba em documentário como acontece com o bombardeamento do segundo – é certo que não caiu bomba nenhuma no Porto, mas as casas que a câmara regista estão mesmo reduzidas a destroços. Aparentemente, deixou de haver margem para o sentido de humor.
Em “Mourir beaucoup”, Saguenail parece querer sobretudo interrogar-se sobre qual é a forma adequada ao autorretrato, quando o retratado perdeu a consistência emocional que normalmente o levaria a preservar a própria imagem. O autor começa por se encenar nu, repugnante, sentenciado a um despertar que já não traz promessa nenhuma, incapaz de percorrer a mesma dimensão que aqueles que habitam ou habitaram na sua casa (mulher e filhos). Ele sabe, com toda a certeza, que, ao filmar-se numa tentativa desesperada de masturbação, está a atingir o insuportável no que concerne ao diálogo do filme com o seu futuro espetador. Mas o problema que lateja na primeira parte de “Mourir beaucoup” parece ser precisamente esse: em que medida é que uma obra criativa consegue fazer o seu autor ultrapassar o peso irremediável da solidão? O discurso teórico de Saguenail, sempre sofisticado, sempre fértil em hipóteses de reconhecimento da alteridade, não consegue apagar a dor dessa dúvida. E talvez nem a pretenda apagar.
Pintores como Rembrandt ou Van Gogh perceberam que, para se conseguirem autorretratar com acuidade, teriam de multiplicar as investidas do pincel. Na segunda parte do seu filme (“Entre Nova Iorque e Cabul”), Saguenail afasta-se da complacência do primeiro esboço de retrato e experimenta conjugar dois estímulos contraditórios. Por um lado, aquiescendo que a chave da compreensão de si mesmo reside afinal no outro, decide prolongar parte de uma proposta que a sua companheira, a artista Regina Guimarães (Corbe), desenvolvera num ciclo de filmes em torno do conceito de “Europa”: trata-se de filmar os espelhos espontâneos que a cidade do Porto oferece (nas superfícies refletoras dos seus edifícios e veículos, com especial destaque para os vidros das janelas) e de, a partir dessa evidência plástica, definir liricamente a promessa de comunidade. Saguenail tenta, portanto, ver-se ao espelho de quem lhe forneceu uma família de afetos. Mas, por outro lado, sabendo-se expulso dos grandes sonhos comunitários que animaram a sua juventude, perverte esse poema visual com uma hipótese narrativa que cita a fantasia hollywoodiana e em simultâneo acusa a realidade política de um mundo plenamente americanizado: imaginando que a cidade do Porto é bombardeada, exatamente como estava a acontecer por essa altura em Cabul, no rescaldo dos célebres ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque, trata-se agora de evocar a quebra de todos os vidros refletores.
Estar entre Nova Iorque e Cabul não é ser cidadão de um segundo mundo ainda suportável. Não: é ter acalentado os sonhos mais profundos e ter posteriormente assistido à sua implacável ruína. Ainda assim, apesar do pessimismo assumido, a errância do gesto criativo traz consigo os primeiros sinais de leveza. Saguenail leva a câmara para as ruas da cidade. Multiplica a sua obra por uma infinidade de micro-metragens cujo conteúdo é apenas a luz solar ou o progresso das nuvens no céu. A própria bomba parece ser acionada por nada mais que música (a repetição de uma nota na banda sonora). E, embora o realizador mostre que o Porto é uma cidade tão desigual e contraditória (ou seja, tão rica e pobre) que podemos nela reconhecer a metrópole dos sonhos ocidentais ou a destruição da capital afegã, a verdade é que a agonia se tornou coletiva, o espetador pode reconhecer-se nela.
Note-se que Saguenail recorre a efeitos especiais muito simples, que agradariam a um Méliès. E sobretudo que o fio da narrativa se constrói com base nas operações cinematográficas mais elementares: a delimitação de enquadramentos que façam com que aquilo que é contemporâneo e em certa medida contíguo pareça pertencer ou a uma época antes da bomba, ou a uma época depois (perspetiva dupla que se harmoniza com a latência cubista das imagens das janelas) e, posteriormente, o recurso à moral do travelling para demonstrar que a ruína não se circunscreve a meia dúzia de pontos escolhidos com precisão cirúrgica, mas corrompe grandes porções da cidade. O poder de reorganização da montagem parece ser bem mais eficaz do que aquele que detém um qualquer Vereador do Urbanismo – Saguenail consegue grande harmonia entre a pobreza dos seus meios de produção e a ambição dos resultados.
Note-se ainda que a passagem, antes assinalada, do “pouco” para o “muito” nos dois títulos gémeos, terá também levado a que o verbo “partir” ultrapassasse o âmbito semântico de que Saguenail teria imediata consciência. Pois, na língua da cidade onde o autor filma (e da poesia da sua mulher), “partir” acrescenta o sentido de “quebrar” aos sentidos que a palavra tem na sua língua natal. As janelas partidas de “Mourir beaucoup” mostram assim que, na errância imprevisível da tradução, ganho e perda se equivalem.
Através de uma fantasia, Saguenail reivindica que a ruína de uma cidade não pode ser instrumentalizada como parte do seu sabor pitoresco (enfim, em breve o Porto acabaria por se tornar uma coqueluche do turismo português…). Ao contrário do que normalmente se diz, o surrealismo é um método de aprofundamento do real. Mas, de repente, o rio Douro imiscui-se por entre as imagens de destroços como uma vaga promessa amniótica
Na última parte de “Mourir beaucoup”, o retratado torna-se figura ausente na casa em que os seus laços familiares se adelgaçaram como um último eco da perda dos sonhos de comunidade. Na sua mulher e nos seus filhos, ainda se reconhecem, contudo, as potencialidades do vidro que desapareceu da forma da cidade (essa que, segundo Baudelaire, muda mais depressa que o coração de um mortal): para além da transparência que os protege da exposição direta de um "filme de família", dedicam-se a refletir o sujeito que tanto espaço terá ocupado nas suas vidas. Reconhecemos alguns dos gestos repugnantes típicos do retratado (vimo-los na primeira parte do filme), mas agora são os outros que, por via da imitação, compõem o retrato. E nessa transferência parcial da autoria para quem tem a autoridade de um longo convívio, insinua-se o fantasma da comédia, última tentativa de leveza.
“Mourir beaucoup” é o corajoso autorretrato de um homem que se relativiza até ao limiar de uma certa retratação. Entre os filmes super 8 que o mostram criança e as imagens ecográficas do seu iminente primeiro neto, entre o abismo onanista e a frota de mãos que acariciam o ventre da filha grávida, transita-se da dúvida da obra para a certeza da gestação de vida. E entretanto, a própria vida se encarregaria de dar as voltas necessárias para fazer regressar o ausente daquilo que ele supunha ser a generosidade de uma despedida.


Data de produção: 2004
Realização: Saguenail (1955-?)

 

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