"O DIÁRIO DE UM PÁROCO DE ALDEIA"

"Cada vez acredito mais que aquilo a que nós chamamos tristeza, angústia, desespero, como para nos persuadirmos de que se trata de certos movimentos da alma, é esta mesma alma, pois do pecado original para cá a condição do homem é tal que não lhe é dado nada compreender em si próprio ou fora de si que não seja sob a forma da angústia."
Georges Bernanos

Enquanto vai preparando a sua evasão, um homem pode pedir aos companheiros de cárcere que imortalizem a sua audácia – algo que ele próprio acabará por fazer, escrevendo (“Fugiu um condenado à morte”, 1956). Um jovem inquieto com o estado do mundo pode escolher o Cemitério do Père-Lachaise como cenário para o seu suicídio, porque entende que este gesto é suficientemente exemplar para merecer alguma forma de celebridade (“O diabo, provavelmente”, 1977). A verdadeira função do cristal, contudo, não é essa: a sua lógica estável, a sua precisão, é uma forma de resistência aos absurdos externos e às falências internas daquele que o produz. Se, em “O buraco” de Jacques Becker, os prisioneiros que tentam fugir perfuram o chão da cadeia com uma violência claramente sexual, o condenado à morte de Robert Bresson parece associar o cinzel com o qual desmonta pacientemente a porta da sua cela ao lápis que se recusa a entregar às autoridades nazis, correndo o risco de fuzilamento imediato. A sua ação é uma ação já escrita, para a escrita-que-há-de-vir, o lápis só sendo erótico enquanto arma de sobrevivência urgente. Que, vinte anos mais tarde, Bresson tenha proposto um personagem que só no suicídio entrevê uma obra-prima de vitalidade, isso apenas mostra o galopar do seu pessimismo.
Mas viajemos até 1951. Bresson decidiu fazer um filme a partir do romance que, com grande sucesso, Georges Bernanos publicara em 1936. O livro narra o embate entre um padre muito jovem e doente, iniciando a sua intervenção católica na zona rural de Ambricourt (extremo norte da França), e os seus paroquianos, indisponíveis para tal intervenção. A despeito de uma fidelidade à letra que ficou célebre (e fez escola), o realizador reduziu o romance à tensão do seu essencial (será preciso esperar pela adaptação de “Ao sol de Satanás”, em 1987, para se poder ouvir num ecrã a dimensão caudalosa do verbo de Bernanos). Para além da radical mudança de tom, isso permitiu que o cineasta se livrasse das propostas ideológicas mais insultuosas do escritor, para se poder focar naquilo que o texto tem de realmente pungente, que é a pintura da vida interior do seu protagonista. Perseguido pelas dores de um cancro cujo diagnóstico ainda desconhece, caído numa solidão profunda, incompreendido, tão obstinado quanto inseguro, chegando a perder o dom da oração e a hesitar na fé, o pároco vai encontrando, na escrita de um diário, forças para não capitular ante a inclemência da sua situação. Ainda que nada se saiba sobre a eventual legitimação do diário pelos poderes da literatura, é inequívoco que este constitui um Texto, rigoroso no seu despojamento, na sua sinceridade, na sua comoção verbal.
André Bazin, Príncipe dos Leitores de Cinema, percebeu de imediato que Bresson recolhera no seu filme, não tanto o assunto do texto de Bernanos (o romance e o diário do personagem sobrepõem-se), mas o próprio texto, o texto em si, com todas as especificidades formais que acusam a sua dimensão literária. Podemos acrescentar que, tendo o cineasta sempre reivindicado uma vocação para a vida emocional do humano, a encenação textual lhe permitiu uma primeira abordagem de intransigente respeito por essa interioridade. Talvez Bresson não ficasse satisfeito se lhe disséssemos que, de todos os seus títulos, este é o que mais se aproxima de “A paixão de Joana d’Arc”, de Carl Dreyer (autor em relação ao qual ele se via como alternativa). Pois, tanto aqui como na obra-prima de 1928, há um efeito sistemático de décalage entre um rosto prolongadamente emocionado e a palavra que concretiza o teor dessa emoção. No filme de Dreyer, mudo, é preciso esperar pelos intertítulos para sabermos por que motivo a atriz Falconetti exprime tanta paixão. Em “O diário de um pároco de aldeia”, rosto e palavra são contemporâneos, mas, como a palavra é dada em voz off, não acompanhamos a sua emissão por parte do rosto. É um gesto de resistência àquela pornografia emocional que tanto incomodava Serge Daney, que algo de príncipe também tinha. Mas, sobretudo porque se trata de um texto (de um cristal de verbo), e não de uma mera fala ou narração, e porque, muitas das vezes em que o escutamos, o rosto de Claude Laydu prolonga a sua emoção muito para além daquilo que seria verosímil numa encenação realista, a impressão que o espetador tem é a de estar a ler o personagem. Encontrando por vezes verdadeiros efeitos de sublinhado (quando a imagem repete a ação dita em off). Laydu já não precisa de ser expressionista como a Falconetti. O texto substitui a necessidade que o ator tem de exprimir a vida interior do personagem que supostamente defende (algo que Bresson considerava grosseiro, uma afronta à delicadeza dessa vida). A emoção aflora no rosto deste primeiro grande modelo bressoniano exatamente como o vento invisível se traduz na água que esculpe ao passar (palavras do próprio Bresson). E, à sua volta, os restantes seres humanos ou só exprimem um único sentimento (a revolta da menina Chantal) ou já se protegeram naquela opacidade aparente que se tornará cara ao realizador, e que só permite a expressividade quando ela surge de forma inadvertida (o prior de Torcy).
Não quer isto dizer que o espetador perceba o protagonista de “O diário de um pároco de aldeia”. Quando o pároco perde forças para continuar o seu escrito e deixa cair ao chão o modesto caderno que usava para o ir urdindo (instalando-se assim o silêncio verbal), a câmara aproxima-se lentamente do seu rosto, num movimento semelhante aos que Ingmar Bergman praticara em “Um verão de amor”, filme quase contemporâneo deste título de Bresson. Mas, se, com esse procedimento formal, Bergman conseguia sugerir ao espetador que ele se estava a abeirar do íntimo da sua bailarina, no filme francês a alma do pároco perde legibilidade à medida que decorre o travelling para a frente. A alma foge da câmara. Estará ela a contemplar o Deus em que tanto acredita? À elipse absoluta corresponde uma eloquência inesgotável. Se alguma coisa ficamos a perceber, é que o cristal de texto nos informara menos sobre a psicologia de um caráter do que sobre o mistério de um comportamento.
Vários personagens secundários atribuem ao pároco uma tenacidade que pode ser qualificada de guerreira, surpreendente num feitio frágil, sem grandes competências sociais e mergulhado numa clara depressão. Esse aspeto militar do ator religioso deixará de ser metafórico quando em 1962 Bresson propuser um filme sobre “O processo de Joana d’Arc”, ou quando dialogar com a Lenda do Santo Graal (embora “Lancelote do Lago”, estreado em 1974, já só ofereça uma manifestação disfórica de tal imaginário). De qualquer modo, a aventura do pároco de aldeia poderá interessar mesmo àquele espetador a quem muito desagrada que lhe venha bater à porta, sem ter sido convidada, uma dessas testemunhas do arrogante Bem…
Pois qual foi o grande cometimento do soldado divino? Ainda que a figura narrativa do encontro seja aquela que agrega um filme sem verdadeira unidade de ação, o sacerdote só consegue estabelecer comunicação de facto com uma das suas paroquianas. Ele consegue extirpar-lhe a revolta contra Deus, que é uma forma de revolta não só inútil como fértil em consequências perversas no domínio afetivo (note-se que Bresson sempre se mostrará amigo de certos modos de insurreição, como aquele que combate o cinismo económico). Ora, imediatamente após ter levado a condessa a deixar de usar o sofrimento como justificação para a degradação do caráter, após a ter tornado tão santa quanto o animal de “Se calhar, Balthazar” ou a viúva grisalha de “O dinheiro”, dá-se um daqueles acontecimentos que, por se mostrarem tão prenhes de sentido como terrivelmente irónicos, podem ser lidos como sobrenaturais: ela morre inesperadamente. E morre feliz.
Se a família da mulher pacificada não percebe (ou finge não perceber?) o teor correto da intervenção do pároco, este não hesita em chamar Bem a esta quase inconfessável demonstração da existência de uma aliança entre morte e bem-estar absoluto. O achado narrativo tem em Bernanos a responsabilidade, claro, mas o certo é que toda a obra de Bresson se pauta por uma compreensão (da miragem) do suicídio que é demasiado obsessiva e visceral para de algum modo não ter sido compreendida pela alma do encenador distanciado. Roland Barthes notara que, em “Os anjos do pecado”, primeira longa-metragem de Bresson (estreada em 1943), o triunfo conclusivo do Bem aparecia tingido com um indisfarçável grãozinho de Mal. “O diário do pároco de aldeia” corrige tudo o que havia para corrigir nessa primeira tentativa cinematográfica e, através do retrato justo, porque irredutível, de um sincero paladino do catolicismo, reabilita a noção de Bem naquilo que deveria ser a sua aptidão para a polémica infinita.

Nota: Tradução da epígrafe por João Gaspar Simões.


Título original: "Journal d'un curé de campagne"
Data de estreia: 1951
Realização: Robert Bresson (1901-1999)
Direção de fotografia: Léonce-Henri Burel
Interpretação: Claude Laydu, Marie Monique Arkell, Nicole Ladmiral, Jean Riveyre, André Guibert


 

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