"FUGIU UM CONDENADO À MORTE - ou O vento sopra onde quer"
Devemos encarcerar os loucos? Devemos encarcerar os homossexuais? As prostitutas? Os traficantes de drogas leves? Quem furtou em desespero de sobrevivência? O sangue desse polémico mar voltará a unir-se, quase por milagre, se a prisão em causa for gerida por nazis. Pois não há margens para a dúvida quanto à injustiça de quem possa ter sido aprisionado pelos vilões mais consensualmente vilões da história da humanidade. E muito menos em 1956, quando a memória estava bem longe da cicatriz.
Na filmografia de Robert Bresson (ele próprio um ex-cativo dos nacional-socialistas), o sentido da figura do cárcere vai variando abruptamente em função do modo como é avaliada a sua justificação. A prisão de “O carteirista” (filme de 1959), por exemplo, é entendida como uma dádiva da existência, já que permite que esse candidato a um anarquismo de trazer por casa peneire as suas ilusões e assim aprofunde a noção de “liberdade”. Mas, no derradeiro título do cineasta (“O dinheiro”, de 1983), o facto de a primeira prisão do protagonista ter sido o resultado indireto de uma falsa acusação, obrigá-lo-á a ajustar os seus atos posteriores à iniquidade de tal pena (palavras de José Navarro de Andrade) – a perceção da injustiça do castigo socialmente instituído é tão intensa que fará dele o grande criminoso que ainda não era. Depois, sim, o cárcere tornar-se-á uma necessidade íntima.
“Fugiu um condenado à morte” é a reconstituição de uma história verídica da Segunda Guerra Mundial, a história do militar francês André Dévigny, que, no verão de 1943, se conseguiu evadir da prisão de Montluc, em Lyon (no sudeste da França), quando ela estava na posse dos nazis. No filme de Bresson, o herói chama-se Fontaine e é interpretado pelo jovem François Leterrier, à época um estudante de filosofia. Sobre Fontaine não sabemos mais nada a não ser que a convicção de que o seu cativeiro (e consequente condenação à morte) é injustificável abre nele uma liberdade interior sobre a qual todas as modalidades de policiamento físico deixam de ter poder. É uma forma oblíqua de renascimento espiritual, desse nascer de novo de que falava Cristo ao fariseu Nicodemos no capítulo terceiro do Evangelho segundo São João (passagem bíblica de onde o realizador retirou o subtítulo do filme). Muitos prisioneiros célebres falaram de facto de uma espécie de liberdade eólica que sentiram entre as paredes apenas físicas do seu cárcere. O próprio Bresson afirmou que, se há sítio onde se pode sentir a presença de Deus, esse sítio é a prisão. Não estamos, contudo, num universo de sonhadores complacentes. A libertação interior de Fontaine é tão justa e poderosa que só poderia ter a libertação física como corolário e é sobretudo esse lado físico que vai ser detalhadamente mostrado durante o filme (que mais se pode mostrar?). O ritmo de inexorabilidade do personagem (palavras do realizador), o consenso sobre o sentido da sua situação e a inesperada ausência de luva que adequou o estilo dito austero de Bresson a um género de excitação física como o thriller de fuga à prisão, fizeram de “Fugiu um condenado à morte” o único sucesso de público do autor. É claramente um dos filmes mais exaltantes de sempre.
Os seus comentadores costumam atribuir, à pungência do tema prisional, consequências decisivas para a maturação da arte do realizador. Philippe Arnaud explica que Bresson nunca abandona o horizonte visual do seu personagem (o que em grande parte do tempo equivale à sua cela) e que, em consequência disso, nem este nem o espetador têm alguma vez acesso a uma visão de conjunto da prisão. No seu parecer, a originalidade do cineasta reside no facto de, quando confrontado com a parcialidade inescapável do ponto de vista, ele decidir radicalizar tal estado, em vez de o tentar suprir artificialmente com largos horizontes de omnisciência percetiva. De este filme em diante, o mundo visual de Bresson será o mundo da pura fragmentação, uma arte da sinédoque em que o conhecimento da parte nunca consegue impedir que o todo se mantenha em grande medida elíptico.
O além desejado não é plenamente vislumbrável. Mas, como se fosse um Robinson Crusoe que não cede ao desespero e procura recursos em si mesmo para poder sobreviver (palavras de Michel Ciment), o condenado à morte decide observar a sua cela com toda a seriedade pragmática de que é capaz. Inesperadamente, talvez a dimensão mais religiosa deste filme se encontre na atenção extrema que Fontaine dedica ao mundo imediato e concreto que o rodeia. E a todos os acasos que se apresentam no seu caminho. O Deus de Bresson não se revela, mas claramente pede que o seu mundo seja objeto da atenção mais sistemática e quase carinhosa. Numa cena célebre de “O diabo, provavelmente” (1977), parece sugerir-se que a Igreja, enquanto instituição, talvez pudesse minorar a sua perda de influência na sociedade se, em vez de tanta deriva intelectual, pseudomoderna, desse à sociedade uma atenção semelhante à que uma empregada de limpeza dá ao chão que aspira ou um reparador de instrumentos musicais consagra ao órgão de que cuida.
A revolução na história de Fontaine dá-se então quando ele percebe que a porta da cela onde está encerrado tem características que permitem a sua desmontagem. Tanto olhou para essa porta que o isola do mundo, tanta atenção lhe deu, que acabou por encontrar o modo de lhe desfazer o caráter fatal. Boa parte do filme reduz-se então ao trabalho meticuloso, silencioso, infinitamente lento e paciente, que Fontaine aplica a mudar a forma como uma porta pode significar abertura. Com conhecimento de causa, Bresson dizia que, quando se está na prisão, a porta é o que há de mais importante. E o espetador segue com excitada atenção esse trabalho manual, simples e delicado, como se acompanhasse o progresso da caligrafia de um diarista de exceção ou os gestos dançados de um carteirista em ação no metropolitano de Paris.
Embora, como em “O diário de um pároco de aldeia”, a vida interior do protagonista seja apontada em voz off, a expressividade do intérprete não deve agora ser procurada no seu rosto, mas sim nas mãos. São estas, em toda a sua argúcia instintiva e intuitiva, que dão eloquência passional ao homem que nelas deposita toda a confiança. Algumas das mensagens mais decisivas que os detidos partilham entre si são as mãos que as transmitem em papelinhos destinados à discrição dos bolsos da roupa. Bresson encontrou uma maneira de trabalhar a matéria humana dos seus filmes que parece fazer toda a lógica num ambiente carcerário, em que manda a cautela que um prisioneiro nunca mostre o que sente. Uma prisão não é definitivamente um teatro. E a mise en scène de Bresson parece ter sido desenvolvida menos em função da suposta influência do teatro no cinema do que para responder a essa grande prisão metafórica que é a vida humana. Se a sua imagética repete sem cessar os motivos da grade e da porta, os seus atores (a quem ele preferia chamar modelos) são compelidos a agir, a lutar para tentarem encontrar o seu caminho de libertação, e não a fingir autenticidade num rosto cuja aptidão expressiva permanece indómita.
Paradoxalmente, os homens da prisão de Montluc não são prisioneiros uns dos outros (como acontecerá aos personagens de “Se calhar, Balthazar”, filme estreado em 1966). Pelo contrário, com um bater de mão na parede que separa a sua primeira cela da cela de um semelhante em destino, Fontaine acabará por desencadear um tornado de comunhão, que lhe valerá amizades sem preço e o tornará um símbolo vivo da liberdade consensual. Em 1958, o polaco Andrzej Munk também aludirá ao facto de os prisioneiros de guerra se entregarem por vezes à imagem mítica de um evadido para conseguirem gerir a sua sanidade mental. Mas a sua “Heroica” deveria ser antes chamada “Irónica” (spoiler containment!), pois os seus prisioneiros acabam por ser duplamente prisioneiros, enquanto no filme de Bresson a fúria da libertação adquire a exemplaridade das coisas que merecem ser gravadas na pedra.
É de facto na pedra que o filme quer ser gravado. A imagem da sua ficha técnica corre sobreposta a uma parede da própria prisão de Montluc, ao lado da placa onde está assinalado o número das vítimas carcerárias dos nazis. A estrutura da obra assenta numa ostensiva repetição dos seus elementos componentes (especialmente daqueles que desenvolvem a temática da comunicação), como se o autor estivesse a retirar todas as consequências práticas da sua teoria que defendia que as coisas só se fixam na memória quando são tomadas nos seus ritmos. Desde o primeiro colóquio de Fontaine com outro prisioneiro, dependente do vaivém reiterado que este executa no pátio da prisão, até à sincronização dos movimentos da fuga final com a recorrência sonora da passagem do comboio ao longe, passando por aquelas conversas furtivas que se assemelham ao momento de higiene que lhes dá contexto físico e que, mais do que parecerem coreografias, são coreografias efetivamente, toda a prisão é mostrada como um mecanismo cuja repetitividade pode ser subvertida por uma esperança a que podemos quase chamar musical.
Sempre que Bresson mostra o percurso que os prisioneiros fazem diariamente para esvaziarem os recipientes com as suas excreções, ouve-se um excerto da Missa em Dó m KV427 de Mozart: “Senhor, tende piedade de nós”… Trata-se de uma espécie de sagração litúrgica dos corpos daqueles padecentes, claro, mas o caráter repetitivo da linha melódica do excerto e sobretudo o facto de este ser sempre o mesmo, dão a essas sequências a função inequívoca de um refrão. E, se um filme tem um refrão, esse filme é música. Ou poesia.
Valerá ainda a pena apontar algumas das implicações que resultam da coincidência alegórica entre esta história de uma libertação-emblema e as conceções e processos criativos de Robert Bresson (coincidência de que o realizador não estaria por certo totalmente ciente e que de modo algum terá querido aprofundar). Desde logo, há que reconhecer o paralelo que faz ecoar a preparação e a fuga de Fontaine nas fases de pré-produção e rodagem de um filme. Se a preparação do condenado à morte é cuidadosa e prolongada, ela não pode pretender dominar as condições em que vai decorrer a fuga posterior. Na verdade, o que Fontaine inconscientemente vai preparando, no seu casulo preludial, é a disponibilidade para aceitar e trabalhar com todos os acasos que a performance lhe vai propor. Não é muito diferente o trabalho do cineasta, defendia Bresson. Uma filmagem é o lugar de plena realização do provérbio que esteve para ser título desta obra: “Deus ajuda a quem se ajuda”.
A ética da atenção ao mundo prolonga-se na vocação paradocumental do método bressoniano. “Fugiu um condenado à morte” foi rodado na prisão em que a sua aventura de facto ocorreu, com a consultadoria do próprio André Dévigny. A filmografia do autor vai documentando aspetos da vida para os quais não costumamos estar alerta: o virtuosismo dos gestos dos carteiristas, o convívio dos hippies nas margens do rio Sena, os esquemas de burla aplicados ao multibanco, etc. O que em certa medida redime “O carteirista” é a atenção extrema à realidade que lhe é exigida pela sua prática imoral. E é, aliás, esse mesmo personagem que reivindica que nenhuma prisão pode ser simplesmente imaginada…
Se algo se imagina dentro de uma prisão, é o fora de campo com que os sons, livres como o vento, revertem a humildade do visível. Bresson começou o seu percurso como artista plástico, mas foi um dos mais destacados cineastas a ter violado a norma de que é a imagem que deve ter a responsabilidade principal do sentido de um filme (palavras de Allen Thiher). Enquanto cineasta, Bresson foi tão compositor como inesperado des-pintor. Em todo o caso, tanto o som como a imagem são por ele trabalhados com disciplina de formão – trata-se de um cinema afiado (ausência de ornamentos, secura de tom, découpage detalhada) e insistente (repetição de cenários, de enquadramentos, de motivos sonoros), destinado a lentamente fazer ceder a porta de um espetador habituado à mera distração. Afinal, um homem pode libertar-se de umas algemas com a mera ação de um alfinete.
Título original: "Un condamné à mort s'est échappé - ou Le vent souffle où il veut"
Data de estreia: 1956
Realização: Robert Bresson (1901-1999)
Direção de fotografia: Léonce-Henri Burel
Interpretação: François Leterrier, Charles Le Clainche, Maurice Beerblock, Roland Monod, Jacques Ertaud
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