"O CARTEIRISTA"

"A última diligência da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Só revela fraqueza se não chegar a reconhecer isso."
Blaise Pascal

Se todo o homem usasse a sua própria cabeça para pensar, o consenso seria mais fácil de obter. Ora porque a lógica, pura donzela isenta da herança do preconceito, levaria o género humano em suave excursão até à verdade. Ora porque o inconsciente não comete distrações grosseiras como trocar o sinal menos pelo sinal mais, ou a prioridade de uma operação pela inclinação do ponto de vista. E foi assim que o francês Robert Bresson e o americano Samuel Fuller (cineastas fidelíssimos a si mesmos, talvez nada interessados na apreciação mútua), chegaram a discursos algo idênticos quando meteram as mãos no motivo ficcional do carteirismo. As noções de ética (de caução cristã) e patriotismo eram abstrações inabarcáveis para os larápios que protagonizam, respetivamente, “O carteirista” e “Mãos perigosas” (1953). Se eles acabam por de algum modo se submeter a essas grelhas de resignação conservadora, tal se deve ao facto de o alto risco associado ao gesto do furto os conduzir até uma inesperada comunhão amorosa que lhes revela que não eram os valores materiais que na realidade eles procuravam na intimidade das suas vítimas. No caso de Bresson, desaparece mesmo da sua obra a figura do pároco de aldeia, ou seja, o reencontro do pecador com o Bem já não se deve à façanha de uma figura com autoridade religiosa, mas à sua paradoxal entrega ao lado mais aventuroso, menos racional, da vida.
Se Michel se socorre da racionalidade, é para legitimar a sua vida fora da lei. É certo que poderia usá-la precisamente para o ímpeto contrário, mas, em ambos os casos, talvez se pusesse a jeito de ser acusado de não estar na vida real. Quando Jeanne lhe diz precisamente isso, sobre a cabeça do carteirista giram aviõezinhos de feira popular, refletidos na janela de um café – lindíssima e discretíssima metáfora, apesar de os teóricos da arte nos dizerem que as metáforas são causa justa para merecer o Inferno, ou que até deixaram de existir na vanguarda da União das Repúblicas Literais. Nos seus sótãos, os humanos parecem ter afinal menos ideias do que macaquinhos e, ainda que Bresson não encha a sua boca com a palavra moral (a expressão é sua), ele não se distingue dos escritores que adaptou (Dostoiévski, Tolstoi, Bernanos) na desconfiança perante os desafios que a racionalidade humana foi colocando à tradição ética do cristianismo. Quando o polícia mostra a Michel uma navalha rara, este faz um gesto que simula um corte no seu próprio peito, como se o facto de “O carteirista” estar a um passo de adaptar o romance “Crime e castigo” equivalesse à alta probabilidade de um ladrão ter de, em algum momento, passar a assassino (de um outro ou de si mesmo). Como a história recente tem demonstrado, em todas as grandes discussões públicas sobre propostas de justa descriminalização, os conservadores argumentam sempre com o perigo de isso poder levar o mundo a descambar numa amoralidade sem freio.
Conforme se mencionou antes, o encontro do ladrão com a moral cristã é o corolário de um percurso inconsciente. Todos os comentadores de “O carteirista” atribuem, aos gestos de furto do personagem principal, uma leitura erótica de que ele próprio não é capaz de se aperceber. Se Bresson foi muitas vezes aproximado do pensador seiscentista Blaise Pascal, a verdade é que, ao contrário deste, o realizador nunca abdicou da lucidez do desejo. Desde logo, sempre afirmou que era movido pelo impetuoso desejo de filmar, e não propriamente pela subjugação desse desejo a um discurso religioso (ainda que uma certa coerência ideológica o levasse a ser muitas vezes visitado por tal discurso). E, sobretudo, toda a sua filmografia é percorrida pela certeza de que, a despeito das ilusões geradas pelos contos de fadas, a sexualidade é uma das grandes promessas de tesouro terreno. Em “O diário de um pároco de aldeia” (1951), o protagonista admite que, se tivesse de renunciar à vocação do sacerdócio, fá-lo-ia pelo amor de uma mulher, e não por questões intelectuais. Duas décadas e meia mais tarde, “Lancelote do Lago” mostra um Bresson fascinado pela hipótese de um amor profano poder ter consequências devastadoras numa gesta divina. Mas talvez seja no seu último filme, “O dinheiro” (1983), que o autor melhor entrelaça a ode ao sexo com a elegia da sua frequente degradação: se, no princípio, dois adolescentes compram uma moldura, não para encaixilharem a imagem do belo corpo nu que acabaram de admirar, mas apenas para obterem dinheiro à custa da passagem de uma nota falsa, talvez se compreenda que, no fim, um homem abruptamente injustiçado pela falsidade de um mundo gerido pelo dinheiro acabe por já só encontrar prazer no ato de matar.
Não há, portanto, em Bresson, uma recusa obscurantista dos factos profundos do psiquismo humano, apenas uma leitura peculiar da eloquência destes. O seu método criativo pretende conjugar a capacidade da tecnologia (câmara de filmar e microfone) para capturar tudo aquilo que está para além da consciência incompleta e imperfeita dos fazedores de um filme com a recusa da herança stanislavskiana de direção de atores. Se o intérprete que de certo modo foi gerado por “A gaivota” de Tchékhov é aquele que sabe o que o seu personagem quer, Bresson deseja sublinhar de tal modo o hiato entre o querer consciente e o querer inconsciente, que prefere não utilizar atores. O seu modelo não pensa o personagem. Os gestos e comportamentos deste, automatizados até ao limiar de tudo o que deixa de ser automático, é que podem levar a que o ser humano em frente à câmara deixe eventualmente escapar uma verdade qualquer da sua alma.
O carteirista é, então, o personagem bressoniano por excelência. Ele é o príncipe da cidade, espaço no qual cada pessoa se comporta como se não houvesse probabilidade de relação com as outras pessoas. Se o seu rosto de anti-ator adere a essa indiferença aparente, evitando exprimir seja o que for, as suas mãos, visualmente separadas dele, mas adestradas com exercícios de automatização, manifestam a autenticidade da vida inconsciente, do desejo profundo de relacionamento. A inteligência das mãos é diferente da do cérebro, esse produtor histérico de teorias (como o anarquismo de Michel) que se revelam sempre incompletas e superadas pela realidade. O gesto do roubo é aproximado ao gesto do poeta que encontra uma realidade íntima e irrefutável que ele próprio desconhecia antes de ter começado a escrever o seu texto. Nas mãos, junta-se a sinceridade fatal do bicho à ironia daquela caligrafia divina que é capaz de fazer o homem sentir que um ponto de chegada dá sentido a todas as linhas que o fizeram tortuosamente lá chegar.
As mãos libertam a montagem de “O carteirista”. Os gestos que elas fazem parecem demorar mais tempo do que é suposto. Será apenas porque, estando eles ocultos na desatenção urbana, nunca olhamos para eles com olhos de ver? Ou será porque eles permitem que ultrapassemos o limiar da ficção em direção à dança, essa sim, uma aventura inequivocamente anárquica? Como diria Philippe Arnaud, o real de Bresson é uma reconstituição que nos devolve à plena estranheza de o encontrarmos deveras. A pesquisa do cineasta em torno deste motivo atingirá porventura o seu zénite experimental em “O diabo, provavelmente” (1977), quando ele constrói enquadramentos que só fazem sentido em função do lugar que as mãos neles ocupam, mas substancialmente adia a entrada destas em cena, como o compositor por vezes retarda a evidência da consonância. Basta ver com atenção o início da sequência em que Valentin, o personagem toxicodependente, está a roubar numa mercearia.
Do “Nosferatu” de Murnau ao “Eduardo Mãos de Tesoura” de Burton, a atenção criadora que os cineastas emprestam à imagem da mão tem sido curiosamente canalizada para a evocação de um personagem mítico: o grande solitário. À semelhança do ponto de vista de Dostoiévski sobre Raskólnikov, Bresson não toma o seu carteirista por um grande pensador libertário, capaz de agitar uma moral cujo fundamento poderá ser apenas a antiguidade. Michel é um mero imaturo, um orgulhoso que ainda não percebeu que estar preso é apenas não ter percebido que toda a gente o está. A liberdade só se torna possível depois dessa aquiescência e, começando nesse espaço interior, se também aí acabar, não é infeliz o final – segundo a lição de Cristo. Não, Michel é apenas um homem estupidamente sozinho, que não sabe entrar dentro dos outros a não ser de modo furtivo (mesmo quando conversa), que não sabe que os seus gestos fora da lei não passam de carícias alienadas.
O que o redime é que, não sabendo isso, ele também não tem um verdadeiro fascínio pelo dinheiro. O que o move é o gosto do risco, a honesta vontade de se pôr â mercê da ausência de controlo. Desvalorizando planos-sequências ou até establishing shots, “O carteirista” é um combate-montagem de fragmentos isolados até ao esplendor imprevisível de uma comunhão.
Ao longo deste rascunho de sala, muito se falou dos encontros que premeiam aqueles que não enganam os impulsos que lhes chegam das regiões desconhecidas das suas mentes. Cumpre agora dizer uma palavra sobre quão inconciliáveis podem ser, afinal, as conceções de inconsciente. O sarcasmo com que Bresson propõe um personagem de psicanalista em “O diabo, provavelmente” demonstra a resistência que com toda a certeza o cineasta sentiria perante uma teoria de entendimento do Homem que, levada às últimas consequências, não deixa pedra sobre pedra no edifício histórico da religião. A beleza contraditória de “O carteirista” reside na esperança teológica que o filme atribui à escuta de um inconsciente que é tudo menos privado. Como se, nas profundezas de cada indivíduo, o diamante minerável fosse afinal a reconciliação com toda a cultura de Deus, desde o Cântico dos Cânticos até às tábuas de Moisés. Pois é, se, no alfabeto, o “t” surge logo a seguir ao “s”, entre Bresson e Breton há anos-luz de distância. Mas isso são apenas teorias… Se todo o homem usasse o seu próprio inconsciente para ser homem, passaria bem sem elas.

Nota: Tradução da epígrafe por Miguel Serras Pereira.


Título original: "Pickpocket"
Data de estreia: 1959
Realização: Robert Bresson (1901-1999)
Direção de fotografia: Léonce-Henri Burel
Interpretação: Martin LaSalle, Marika Green, Jean Pélégri, Pierre Leymarie
 

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