"SE CALHAR, BALTHAZAR"

Em Portugal, este filme foi intitulado como "Peregrinação exemplar". Tal título condiciona a interpretação do filme, o que, se é perigoso em todos os casos, pode ser considerado francamente grave num universo como o de Bresson, construído para significar apenas no limite do insignificante. Assim sendo, proponho a alternativa "Se calhar, Balthazar". É literalmente mais rigorosa; evoca a noção de "acaso", que é a noção semanticamente relevante do título original; e conserva a sua rima interna, que era muito do agrado do cineasta.


É preciso preparar as pessoas para o sexo e para o dinheiro. E por isso existe a juventude, que extingue a inocência infantil com todos os requintes de uma destruição maciça. “Se calhar, Balthazar” é a proposta de um sistema narrativo que se estende desde uma adolescente tentada (Marie) até um adulto deformado sem remissão (Arnold), a partir do qual só existe a pausa de tudo aquilo que um cineasta já não precisa de narrar porque já o sugeriu com máxima eloquência. Entre o passo ainda suspenso de Marie e aquele que poderia constituir um fantasma do seu amargo futuro, navega um burro sem nada de extraordinário, Balthazar, ora animal de estimação, ora besta de trabalho, mas sempre indefeso.
Nunca é demais sublinhar que o cineasta Robert Bresson não era um puritano bacoco. Com o espírito de um perfecionista sensual, ele trabalhou a paleta da fotografia do seu primeiro filme a cores, “Uma mulher meiga”, para que ela se harmonizasse com o tom de pele da sua atriz, Dominique Sanda. Em “Mouchette”, a única ideia narrativa relevante que acrescentou à trama da novela de Georges Bernanos foi a grande cena dos carrinhos de choque, através da qual quis certamente evocar a alegria violenta de um despertar para o erotismo. O que se pode sentir no discurso bressoniano é talvez um respeito demasiado profundo pelo sexo, a memória intensa daquelas sinceríssimas expectativas que um jovem entrega às promessas do prazer quando ainda não é capaz de adivinhar que uma biografia do prazer pode também ser biografia de sofrimento. No filme que neste texto se discute, os instantes que se seguem ao batismo de Balthazar são dedicados a duas palavras apenas, aos nomes das duas crianças que se amam, “Marie” e “Jacques”, como se esse amor, apenas por ser pueril, tivesse o caráter do mais luminoso sacramento.
O que Bresson filma em “Au hasard Balthazar” é a perda de liberdade que caracteriza o crescimento. Se aquilo que o burro claramente vê nos animais de um circo é o seu estatuto de prisioneiros, a sua deriva de dono humano em dono humano não é menos expressiva. Porque é que Arnold tem medo de ser preso, se ele já está completamente preso ao vício do alcoolismo? A fortuna que lhe cai do céu aos trambolhões não é afinal a morte que o liberta, quando já nada mais o poderia libertar? Será o avarento livre, como ele próprio tanto reivindica, ou um mero servo do dinheiro? E Gérard, não lhe faria bem tornar-se preso literal, já que a fanfarronice e a imbecilidade o impedem de entender que a única coisa que interessa na vida é “encontrar alguém que nos ajude a fugir” (palavras de Marie)?
Este é o mundo contrário ao de “O carteirista”. Se, na cidade do filme de 1959, a indiferença engendrava a necessidade de um toque furtivo, o contexto provinciano de “Se calhar, Balthazar” é o do sufoco relacional: em vez de existirem em saudável comunhão, os humanos estão insuportavelmente presos uns aos outros. A história de uma pessoa não é apenas a história dessa pessoa, mas a de todas aquelas que pertencem ao seu sistema gravitacional. Quando a mãe de Marie afirma que a sua filha “partiu e não voltará mais”, compreende-se que, para se libertar dos efeitos perniciosos daqueles com quem se havia relacionado, a rapariga teve de quebrar radicalmente toda a possibilidade de a eles regressar. Quererá isso dizer que ela morreu? É provável, mas não sabemos e não precisamos de saber. Basta-nos ter acompanhado a sua queda espiritual. Quando Gérard seduz Marie, ela só aceita a investida erótica porque o jogo de apanhada que ambos fazem em torno do burro (essa madalena proustiana) a reconduz enganadoramente para a memória do perfeito afeto pueril. Porém, quando mais tarde Jacques visita a adolescente com a oferta de um amor inteiro e sem julgamento, se a proximidade de Balthazar ainda a leva a dizer “Hei de amá-lo!”, ela sente a estranha necessidade de ir ter, uma última vez, com os seus companheiros de degradação. Porquê esse gesto tão difícil de justificar? Não será ele a demonstração de que a infância deixou já de ter qualquer efeito luminoso sobre a jovem? A vida, essa, é que atingiu o ponto de não retorno – já só resta a consumação trágica.
O génio do burro não será matemático (como se alude na sequência certamente paródica da sua passagem pelo espetáculo de circo). Ao arrepio dos clichés sobre animalidade, Balthazar é a hipótese de um ser que, tendo sofrido brutalmente durante toda a vida, nunca se degradou. E é essa mansidão crística, revolucionária (essa sageza do sal), que cumpre a profecia fortuita do pai de Jacques: aquele bicho nunca poderia ser propriedade de ninguém! A liberdade é uma questão de moral.
De certo modo, Balthazar está para Marie como o diário estava para o pároco de aldeia e as mãos para o carteirista, ou seja, o burro é a materialização de uma autenticidade que habita de tal modo no íntimo da rapariga que ultrapassa a sua consciência. Aquilo que, a propósito da degeneração da sua personagem, Anne Wiazemsky nunca poderia exprimir (e que ninguém lhe pede para fingir que pode), é dado pela eloquência da inexpressividade do burro. Claro que, depois de, no filme anterior a este, evocar a aniquilação violenta de Joana d’Arc, Bresson parece ter perdido força para encarar a figura juvenil com otimismo. Mas o final infeliz de “Se calhar, Balthazar” (e de todos os títulos subsequentes) não altera a sua intuição de que há algo no humano que permanece entranhado no mais inexpugnável mistério, independentemente de isso levar ao encontro ou à pura desventura. E, caro leitor, francamente, não é preciso ser crente em fadas para aceitar que o Homem não pode ser reduzido à soma exata de Darwin, Marx e Freud. É por isso que nunca conseguiremos a solução, é por isso que vamos sendo salvos da autodestruição…
Mas pode filmar-se um humano como se filma um burro? Pode-se pelo menos investigar formas de aproximação à honestidade. Por exemplo, no que concerne à voz dos atores. Bresson não acreditava que as vozes trabalhadas pudessem transmitir a verdade íntima dos seus intérpretes. De facto, é Gérard, o grande perverso do filme, quem a dada altura aparece a cantar na igreja com todo o virtuosismo da hipocrisia. O genérico de abertura estabelece desde logo uma continuidade provocatória entre a voz animal e a música de Franz Schubert, o compositor que mais longe terá levado a capacidade de uma canção erudita para exprimir o sofrimento. Já que o exemplo musical é meramente pianístico, quase se pode dizer que Bresson insinua que esse acompanhamento encontra o seu solista no zurro animal. Uma tal afronta das hierarquias convencionais é elogiosa para ambas as partes: talvez a música de Schubert seja a hipótese mais digna que o humano tem de se aproximar da sinceridade natural; talvez o zurro seja música ao mais alto nível, inesgotavelmente polissémica e comovedora. Ora, no seu trabalho com os atores, Bresson tentou encontrar uma compressão discursiva e um modo de entoação humílimo que lhe permitissem fazer o verbo acompanhar o humano exatamente como o zumbido acompanha a abelha (palavras do próprio). Isto primeiro estranha-se como a Coca Cola, mas depois entranha-se como uma soberana emancipação do totalitarismo publicitário do mundo contemporâneo.
O intérprete bressoniano (a que ele chamava “modelo”) não mente para poder seduzir o espetador. Enquanto diretor de atores, Bresson é o extremo oposto da protagonista de “As damas do Bosque de Bolonha”. Pode parecer que os humanos dos seus filmes não exprimem nada, mas na verdade o que eles se abstêm é de simular aparências que possam convidar ao preconceito ou à simplificação. Todos os atores bressonianos parecem resistir a um interrogatório em potência, um interrogatório com pretensão de os explicar, de os qualificar, como aquele que sofreu Joana d'Arc. A agressividade que por vezes se parece concretizar nos seus rostos talvez tenha algo a ver com essa defesa contra quem lhes possa querer reduzir o mistério. Aquilo que André Bazin dizia da relação de Rossellini com o protagonista de “Alemanha, ano zero” (o que se passa na psicologia de uma criança não é da conta de um cineasta adulto), pode ser expandido a toda a galeria humana que percorre a obra do autor de “Se calhar, Balthazar”. E, na verdade, tanto María Casares como Anne Wiazemsky e Dominique Sanda, que se profissionalizaram como atrizes a montante e a jusante do encontro com Bresson, estão especialmente expressivas, sedutoras, nesses filmes em que se submeteram à contestação da arte de representar. 
Neste universo estético singular, não é grande a diferença entre haver lágrimas no rosto de Marie ou sobre ele cair a chuva. O espetador não pode ansiar por um sorriso (como acontece no cinema de Buster Keaton) nem pelo seu contrapeso melodramático: as consequências afetivas da crueldade são mostradas sem recurso ao patético convencional do jogo do ator. Nos filmes de Bresson, as reações emocionais dos seres humanos quase parecem a mera estenografia de toda essa matéria visceral, tendo o espetador de contar mais com o que ele próprio se lembra das emoções que cada cena sugere do que com o pronto-a-sentir de uma encenação dita realista. A própria técnica narrativa se constrói a partir do pressuposto de que, para bom entendedor, meia imagem basta. Cada uma das informações essenciais para a compreensão das histórias de “Se calhar, Balthazar”, é dada apenas uma vez e sem a menor ênfase. Não quer isso dizer que o exercício possa ser interpretado à vontade do freguês, como de certo modo reivindica o cineasta Michael Haneke. Não, o espetador só encontra o caminho hermenêutico adequado quando aceita estar perante um cinema de radical infra-revelação.
O que será que desaparece da obra de Bresson, a partir deste filme: Deus (como defendem alguns comentadores) ou a legibilidade de Deus? A rainha de “Lancelote do Lago” critica o facto de os Cavaleiros da Távola Redonda se relacionarem com a hipótese da divindade como se esta fosse um objeto capturável. Ora, o único argumento a favor do sobrenatural é este não poder afinal ser provado – é o paradoxo desta vida aquém ser vulgar, simples, sem outros efeitos especiais para além dos sentimentos irrepresentáveis que habitam a alma humana e da conexão inevitável que o pensamento vai tentando fazer entre sentido e acaso narrativo. E, caro leitor, na verdade pode acusar-se Deus de tudo, menos de ser um exibicionista.


Título original: "Au hasard Balthazar"
Título em Portugal: "Peregrinação exemplar"
Data de estreia: 1966
Realização: Robert Bresson (1901-1999)
Interpretação: Anne Wiazemsky, Walter Green, François Lafarge, Jean-Claude Guilbert, Pierre Klossowski
 

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