"DECÁLOGO, SEIS"

NÃO FALARÁS DO QUE NÃO TE MOVE
Das duas séries com que Krzysztof Kieślowski rematou a sua obra cinematográfica, o "Decálogo" parece mais consistente do que a "Trilogia das cores". A despeito de, em ambas, tentar evocar a relação oblíqua que os ocidentais mantêm com alguns dos conceitos basilares da sua civilização, talvez o realizador estivesse genuinamente mais interessado em questões morais do que políticas (pelo menos nessa fase da sua vida). Se, em "Branco", ainda se propôs demonstrar como a desigualdade social pode contaminar os domínios mais íntimos do ser, só com muita, mas mesmo muita hermenêutica é que a liberdade de "Azul" ou a solidariedade de "Vermelho" traçam alguma tangente com o sentido que essas palavras tomaram num momento mítico da história política. Aliás, em grande medida, o “Decálogo” é uma reflexão sobre as perversões morais que ameaçam a vida da célula familiar, que praticamente só toma a classe média em consideração. E fá-lo como se, desse meio-termo socialmente suportável, se pudesse deduzir uma universalidade discursiva que o extremo da miséria (ou, já agora, da abundância) nunca chegaria a pôr em causa. Ou seja, fá-lo abdicando precisamente da política.

NÃO TERÁS ILUSÕES SOBRE O TEU OFÍCIO
O argumento do “Decálogo” foi escrito por Kieślowski em colaboração com o advogado Krzysztof Piesiewicz. Um dos episódios que atingiu mais celebridade (talvez sem a merecer) foi baseado na experiência deste último, quando ele teve de se confrontar profissionalmente com o horror da pena de morte (que, na Polónia, só foi oficialmente abolida em 1998). Como muitas vezes acontece nos momentos mais frágeis de uma obra, em “Decálogo, cinco” fica exposta a reivindicação substancial mais operante de toda a série: a Lei (a do direito moderno, a de Moisés) é um instrumento em grande medida ineficaz, seja como elemento dissuasor, seja como justificação punitiva.
O jurista sabe, aliás, que o seu ofício é sobretudo o de intérprete de textos coercivos que, a despeito da ambição universalizante, nunca conseguem prever todas as situações às quais se podem aplicar. Uma meditação contemporânea, mas sobretudo sincera, sobre os alicerces do edifício moral judaico-cristão teria, portanto, forçosamente de ser um trabalho crítico, no sentido mais nobre que a filosofia lhe dá. E sem que isso pusesse necessariamente em causa a razoável adesão que os argumentistas emprestam a esse sistema ético.

NÃO ACEITARÁS A HERANÇA EXATAMENTE COMO TA DEIXAM
A proibição do falso testemunho, por exemplo. Ela não pode ser cumprida como se a vida tivesse a simplicidade de uma sessão de catequese. De acordo com Kieślowski, a mentira tem um papel decisivo na gestão do nosso quotidiano moral, e a sua prática deve ser avaliada ad hoc. No segundo episódio do “Decálogo”, é a mentira que permite evitar um aborto algo leviano. No quarto, é ela que leva a que pai e filha esclareçam o teor da relação que os une. No oitavo, percebe-se que a mentira pode ser usada como mera tática, em benefício de valores superiores. Mas, já pelo contrário, no nono episódio se conclui que, dada a especificidade do dilema aí levantado (a perspetiva de uma continuidade de casamento sem vida sexual), só a sinceridade absoluta entre as personagens poderá viabilizar o convívio com o sofrimento.
É em “Decálogo, seis” que o autor se exprime com a maior clareza ideológica possível. Ele desvaloriza a verdade freudiana que a mulher ensina, de forma exemplar, ao rapaz. Dizer que só existe o sexo não é dizer a verdade, mas apenas ser cínico. Pois a mentira em que vive o rapaz (fazendo-o agir de modo aparentemente sinistro, como acontece a muitos dos personagens do realizador) é uma verdade muito mais funda, porventura divina. O ser humano não possui conhecimento em quantidade suficiente para poder saber com segurança quando é que diz a verdade e quando é que está a mentir. A letra do oitavo mandamento não faz jus ao seu espírito.

NÃO TE IMPEDIRÁS DE ACRESCENTAR À HERANÇA.
O conflito explorado em “Decálogo, seis” é francamente singelo: o rapaz ainda está demasiado próximo da infância, a mulher já dela está demasiado distante. Kieślowski pode ter cultivado uma pose sisuda (é de lamentar, aliás, que não tenha realizado mais comédias…), mas parece bastante evidente que a sua adesão a um cinema narrativo equivale a um gosto quase pueril pela arte de contar histórias. Segredos terríveis, mistérios excitantes, suspenses vários, cartas confidenciais que só devem ser abertas após a morte, selos raros que só podem ser encontrados de forma aventurosa… Tudo isso servirá para desencadear a discussão moral, claro, mas até lá, é puro gozo juvenil.
Talvez o melhor comentário que alguma vez foi feito às tábuas de Moisés esteja explicitado no Evangelho segundo São João, capítulo 13, versículo 34, quando um famigerado pensador moral (muitas vezes simplificado como filho de Deus) disse: “Dou-vos um novo mandamento: (…) que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei.” Quem aceitar jogar o jogo narrativo da série televisiva de Kieślowski, também dele poderá deduzir um gesto de reescrita ética que se revela consentâneo com a sensibilidade da época da sua produção: “Age de tal forma que a tua ação garanta sempre a vida e a integridade da criança.” É bonito, talvez um pouco fácil (basta relembrar o “M” de Fritz Lang), mas sobretudo justo no que concerne à perceção deste nosso tempo tão galinha, tão coruja.

NÃO FALARÁS SEM CUIDARES DA FORMA COMO FALAS
Na história do imberbe que espia a sua vizinha com um pequeno telescópio, o amor é lapidarmente definido como a possibilidade de arrancar ao corpo, mais do que esperma, o próprio sangue. Mas é sobretudo bonito perceber como a atenção de Kieślowski às cores já parece mais interessada no seu potencial emotivo em abstrato do que no facto de haver seres no mundo que quase podem ser bandeiras do branco ou do vermelho. O autor polaco é um formalista.
Como numa variação do mito de “A janela indiscreta”, o protagonista de “Decálogo, seis” também só tem suspeitas sobre a vizinha que desconhece. Só que, ao contrário do fotógrafo de Hitchcock, as suas suspeitas de apaixonado são apenas positivas. É, no entanto, também uma metáfora do cinema que se apresenta no prédio em frente, e também paradoxalmente realizada através da referência à ausência de profundidade da pintura – a découpage (a variação do ponto de vista) é em larga medida substituída por movimentos de câmara que vão montando os planos situados lado a lado numa espécie de tríptico.
Primeiro, ele vê-a obsessivamente num filme quase mudo. Depois, ela deixa de o ver. Primeiro, eles encenam-se um ao outro, mas de longe (o episódio da falsa fuga de gás, a colocação da cama no ângulo de visão do telescópio). Depois, ela encena-o em demasiada proximidade (a sequência climáctica) e ele paga-lhe com uma ausência obcecante. O que apaixona parece ser sempre a carência de uma das dimensões constitutivas da forma cinematográfica.

NÃO TERÁS ILUSÕES SOBRE O TEU DISCURSO
Kieślowski reconhece a importância iniludível da libido, mas não parece encará-la como uma potência libertadora: em “Três cores: branco”, a performance sexual chega a ser mostrada como a mais cruel manifestação do capitalismo em esplendor. Em vários episódios do “Decálogo”, lança-se às personagens o desafio de superarem algumas das exigências da vida erótica. E a verdade é que elas conseguem sempre fazê-lo. Afinal, os casais da série nunca se separam. E, se quisermos explorar a relação oblíqua de “Decálogo, seis” com o Sexto Mandamento da tradição judaica, podemos supor que a protagonista deixará de viver em estado de permanente adultério, depois de se ter confrontado com o amor em estado todo-puro, mas nada-louco (o rapaz deixa de se masturbar).
Este pequeno filme não tem sentido fora da série discursiva de que faz parte. A longa-metragem que o realizador propôs a partir do mesmo material, abusando da música delicodoce e impondo um final alternativo de franco mau gosto, perde relevância ao simular um discurso amoroso isolado da reflexão moral. Em todo o caso, não é a obediência consciente das personagens a umas tábuas genéricas, arcaicas e esquecidas, que faz com que a moral prevaleça no âmbito da família, mas sim a ternura. Só a ternura (nem que seja ex machina) consegue ser mais forte do que o sexo. Só a ternura consegue fazer o que a Lei não faz.
Provavelmente, Kieślowski e o seu coargumentista confiam que a ternura seja a forma mais sofisticada de intervenção de Deus no mundo terreno. Misticismo humilde. Mas, perante esta reflexão tão rigorosa e sincera, o espetador agnóstico é levado, pelo contrário, a perguntar-se se a reivindicação da Infância na Idade da crueza sexual não será afinal a manifestação mais irrecusável da interiorização coletiva da Lei.

Nota: A citação do Novo Testamento foi retirada da edição de 2003 da Bíblia dos Capuchinhos.

Título original: "Dekalog, sześć"
Data de estreia: 1990
Realização: Krzysztof Kieślowski (1941-1996)
Argumento: Krzysztof Kieślowski & Krzysztof Piesiewicz
Direção de fotografia: Witold Adamek
Interpretação: Grażyna Szapołowska, Olaf Lubaszenko







 

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