"JANELA INDISCRETA"

Contava Buster Keaton que uma das razões que o tinham levado a transitar do teatro para o cinema fora o facto de esta última arte oferecer uma variedade inesgotável de cenários reais para a performance de um ator (tal motivação valeu-nos, por exemplo, a inexcedível sequência de "Sherlock Jr." em que o personagem keatoniano entra em sonho num ecrã de cinema, e nesse ecrã os cenários reais mudam a uma velocidade burlescamente inadequada à capacidade física de um corpo se deslocar entre eles). Ora, a obra máxima de Alfred Hitchcock, autor muitas vezes tomado como sinédoque do cinema (ou como modelo do que o cinema deve ser), começa com um efeito de cortina que prepara o espetador para a insolente teatralidade do cenário único (e relativamente artificioso) onde a sua ação vai decorrer. Contudo, ninguém por certo negará que “Janela indiscreta” continua a ser um paradigma do que o cinema deve ser
Para Hitchcock, a forma de um filme não era a mera aia que ajudava o assunto a jogar o que tinha de jogar. O seu génio exprimia-se na vontade jubilosa de brincar com a forma, ou melhor, de brincar com o próprio filme – com a sua essência, com a sua anatomia, com a sua mecânica, com o seu manual de supostas instruções. Quando o espetador se torna, finalmente, o herói de um filme seu (algo que Gilles Deleuze considerava inevitável, de tal modo o fazer hitchcockiano requeria a entidade espetador como elemento essencial da sua equação criativa), o cinema que constituirá o seu campo de suspense e ação é metaforizado por um conjunto de paradoxos formais: o ponto de vista único e a impossibilidade de planos muito aproximados como acontece a quem está na plateia de uma representação teatral; a separação da escultura, da dança e da música (corpo, movimento, som) por apartamentos, como acontece a quem frui obras de arte ditas não-totais; e sobretudo a inibição de movimento a um personagem que dele precisava sobremaneira para fazer imagens sem movimento (fotografia). Para falar sobre leitura, não teve Cervantes de inventar um Quixote que treslê?
Na verdade, o que se oferece à visão de Jefferies é mais a metáfora de um filme antes de ser montado (daí os paradoxos aludidos). As imagens que ele vê na película das janelas dos vizinhos são uma espécie de rushes. Se pensarmos, aliás, em termos de um cinema que serve para contar histórias, a maior parte desses rushes quase não serão montados, permanecendo num limbo relativamente fragmentário (mesmo o encontro entre o compositor e a Miss Lonelyhearts parece ser um filme secundário que um outro montador terá editado à margem do entrecho principal). O argumentista de “Janela indiscreta” confirmou que a grande contribuição narrativa de Hitchcock para o projeto foi precisamente este feixe de histórias secundárias que, como numa obra moderna (mas quando a modernidade ainda não era um dado adquirido em Hollywood), contribuem para as questões de sentido que o filme levanta, e não propriamente para a sua lógica narrativa.
Para todos os grandes cineastas, a montagem é uma operação de pensamento (e não o mero ofício de corte e costura). Jefferies compreende algo que está para além das aparências da realidade (um assassinato secreto) como quem monta as imagens que se oferecem nas janelas da casa de um dos seus vizinhos. E, para tal, é tão importante o visível colhido em tais janelas, como aquilo que não se vê, e que tem de ser, portanto, preenchido pelo pensamento. Em “A vítima do medo”, filme-irmão de “Janela indiscreta”, realizado por outro imenso autor britânico (Michael Powell), a insana pretensão documental do protagonista é mostrada como sendo uma forma de apreensão do mundo muito menos fecunda do que a capacidade de raciocínio da personagem cega. Apesar de estes títulos abordarem momentos diferentes da produção de um filme (rodagem em Powell, montagem em Hitchcock), em ambos se celebra a elipse do visível (as paredes entre as janelas…) como o elemento central no tipo de construção semântica que é próprio da arte das imagens em movimento.
Hitchcock afirmou que “Janela indiscreta” tinha sido concebida como um comentário à mítica experiência conhecida como “Efeito Kuleshov”. E, de facto, o seu filme acompanha as grandes conclusões que se podem tirar de tal experiência. Desde a confirmação de que um dos principais temas da operação de montagem é o próprio olhar, até ao papel dos lugares comuns culturais no preenchimento das elipses do visível, passando pela tomada de consciência de que o sentido do filme reside, em grande medida, no próprio espetador e de que este é, portanto, tão montador quanto o montador literal.
Porque é que Jefferies depreende que houve um homicídio na casa de um vizinho? Porque, de certa maneira, ele tanto quer foder a sua namorada Lisa como matá-la, dada a insistência dela na necessidade de casamento. O homicídio efetivo que se passa nos ecrãs do outro lado do pátio ecoa algo que está latente na psicologia de Jefferies, apesar de ser certo que nunca este há de tomar consciência disso (e muito menos ultrapassar um tal estado de latência). O interesse pelo cinema não é, por conseguinte, um mero upgrade da coscuvilhice. Tanto Lisa como Jefferies acabam por correr risco de morte no exercício da sua indiscrição – ou seja, perante as vidas das personagens de um filme, todo o espetador pode pressentir (ainda que vagamente) algo de terrível em si mesmo. Não é tudo entertainment
De resto, o que existe em “Janela indiscreta” é uma sageza do amor, típica do classicismo hollywoodiano (mas quando o classicismo também já não era um dado adquirido em tais fábricas de imaginário). Jefferies julga que Lisa é fútil, sente que ela é incapaz de o acompanhar numa vida toda feita de contrariedades. Mas Hitchcock faz o seu tradicional cameo a acertar um relógio de parede: Jefferies já não vai para novo e, quando as horas começam a corresponder a números elevados, a alternativa à relação estável passa a ser nada mais que a solidão. O realizador parece falar sobretudo com a voz da enfermeira Stella, que não entende as modernices que complicam o que deveria ser simples – if boy meets girl and boy loves girl, why wouldn’t boy marry girl? Mas é claro que Lisa revelará a sua estaleca, mostrar-se-á mulher digna da alegria e da tristeza, da riqueza e da pobreza, da saúde e da perna partida numa aventura. E tal revelação é quase tão simples como a que se ofereceria ao namorado que percebesse que a namorada estava afinal no mesmo comprimento de onda cinéfilo. Sim, a união de Jefferies e Lisa será talhada não no céu, mas na partilha de uma certa perversidade.
O filme é, claro, uma comédia. A própria perversidade contribui para o humor. Entre o suicídio por excesso de solidão e o homicídio por excesso de convívio, todos os destinos (todos os géneros de cinema) se oferecem, em suspenso, ao olhar do casal indeciso. Mas eles sabem que não chegarão aos pontos extremos dessa cinemateca. Sabem que são protagonistas de uma comédia (muito melhor do que, por exemplo, o Scapin de Molière, que tenta desesperadamente tramar o bom destino, sem perceber que, desde o início, tudo estava bem porque tudo tinha começado bem). Ou melhor, o que eles sabem é que, no seu caso, uma certa erótica da morte só os afeta enquanto espetadores – fá-los pensar seriamente, mas de modo algum agir em tão extrema direção.
François Truffaut reconhecia que, se o primeiro visionamento de “Janela indiscreta” lhe sugerira ter estado a conviver com uma galeria de horrores, alguns anos depois, a vizinhança de Jefferies já só lhe parecia o catálogo das fraquezas humanas. E, no século XXI, não hão de todos aqueles farrapos de histórias passar por serem apenas vidas normais, como as de todos nós? O tempo está do lado desta obra que, obedecendo ao pressuposto clássico de que o caos aparente de um filme tem de descambar numa narrativa com pés e cabeça, abre, contudo, para o futuro (da vida e da arte). A excitação que se atribui ao processo de deslindar um crime (neste caso bastante chocho…) descamba em pura contemplação da forma cinematográfica – em toda a sua beleza, inventividade e pertinência filosófica. Nem em busca de uma vista sobre a cidade (como o solar James Ivory, que tanto irrita os críticos), nem levando as traseiras demasiado a sério (como o melodramático Michael Powell, que tanto irritou o público), o que Hitchcock consegue casar é o cinema clássico com o cinema moderno, o que o cinema deve ser com o que o cinema pode ser. Na cena em que o autor aparece a mexer num relógio, ele está no apartamento de um personagem músico. A canção que este vai compondo nunca consegue tornar-se a banda sonora de um filme cujo lirismo, ainda que evidente, se articula no equilíbrio instável de uma contramúsica.

Título original: "Rear window"
Data de estreia: 1954
Realização: Alfred Hitchcock (1899 -1980)
Argumento: John Michael Hayes
Direção de fotografia: Robert Burks
Interpretação: James Stewart, Grace Kelly, Thelma Ritter, Wendell Corey, Raymond Burr

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