"O DIABO, PROVAVELMENTE"

“Só são jovens, verdadeiramente jovens, aqueles que Deus designou como não podendo sobreviver à sua juventude."
Georges Bernanos

Talvez não haja mais misticismo do que este: Deus pode ser quase pressentido quando damos uma atenção carinhosa ao Seu(-e-Nosso) mundo. A diferença entre atenção e intervenção pode parecer pequena, mas é, provavelmente, o que nos faz passar de Deus para o Diabo. Certamente é o que nos faz passar do prazer do céu azul e dos rios onde se pode tomar banho para o crescimento económico, o progresso tumoral que este exige e todos esses mecanismos (oh! as sondagens, oh! as estatísticas) que aparentam servir a liberdade – quando a liberdade seria sobretudo poder continuar a tomar banho em alguns esplendorosos rios.
Não se inquiete, leitor que gosta de começar a história pelo Fim. Se Robert Bresson tivesse vivido numa República Mais ou Menos Socialista, teria tentado ser crítico do mais-homicida e do menos-delirante dessa outra maneira de fazer cair anjos. Como assim não aconteceu, o cineasta tentou contornar a censura criminosa do dinheiro para nos demonstrar que, quando o dinheiro polui o desejo profundo e sincero de viver, este pode já só conseguir resistir nas suas manifestações mais lúcidas: o desejo de foder e o desejo de morrer.
A Dreyer o que é da mulher, a Bresson o que é do jovem. A renitência de Charles, protagonista de “O diabo, provavelmente”, ao interrogatório de um médico da mente que o pretende curar das tendências suicidas vale o processo da mítica adolescente Joana d’Arc. Mutatis mutandis, ambos os casos evidenciam a impossibilidade de integração adulta quando a vida já só pode ser defendida pela defesa do sentido da vida. Ambos os casos revelam a vocação política (não necessariamente militante) que pode derivar da crença religiosa – selvagem na donzela de Orleães, subtil no herdeiro esclarecido do Maio de 68. Como era nos princípios ensinados por Cristo, não deve agora (e nunca) a Igreja acompanhar os tempos se os tempos forem diabólicos.
A famosa cena da discussão num templo ao som de um aspirador em atividade e da manutenção de um órgão faz lembrar o momento de “Quatro noites de um sonhador” em que, estando um artista da moda a cavalgar um delírio teórico, o (também jovem) protagonista do filme se limita a procurar uma garrafa que contenha vinho. Se os homens de religião se ocupassem do real com a mesma atenção carinhosa com que um homem de trabalho cuida de um instrumento produtor de som, talvez se pudesse reencontrar uma música que conseguisse exprimir mais do que a cacofonia do mundo. Para além do desespero irrequieto ante o real, não será tudo discussão bizantina? Como é que há párocos que se dizem sentir entediados?
Numa sequência quase inverosímil, Charles vai acampar numa igreja, levando consigo um gira-discos onde escuta um motete de Monteverdi cujo texto é retirado do “Cântico dos cânticos”. A música é a arte dos jovens. E Bresson, com a sua característica autoexigência, parece atribuir-lhe um poder superior ao das artes a que ele próprio se dedicou (primeiro a pintura, depois o cinema). Ficou célebre a sua confissão de que o “Dies Irae” ouvido no funeral da mãe lhe deu plena consciência de Deus durante cerca de três minutos. E que isso terá bastado para uma vida inteira de fé.
A música é tão importante para a sua “Mouchette” que ela se recusa a afinar a voz quando entoa a sílaba tónica da palavra “Colombo” na canção que lhe ensinam na escola. Ninguém pode ser obrigado a cantar, porque isso é demasiado profundo, demasiado íntimo. Especialmente quando o contexto da performance apenas intensifica a convicção que o cantor tem de não estar no mesmo tom do resto do mundo, e quando a letra da canção fala da esperança de um novo céu. Mouchette só cantará o nome do mítico descobridor com afinação perfeita quando estiver a cuidar do homem em quem incautamente deposita toda a sua esperança sentimental.
Mas também o condenado à morte há de começar com uma canção o seu processo de diálogo através das paredes do cárcere nazi. E o ato de cantar há de também confirmar ao marido da mulher meiga que algo no íntimo desta terá mudado de forma radical e definitiva. Mais do que nunca parecendo uma figura de Botticelli, o Charles do filme que se discute neste rascunho de sala adormece ao som de uma encenação musical de um excerto do texto por excelência do erotismo cristão, no qual, entre muitas outras coisas, se diz: “Eu durmo, mas meu coração vigia.” Bresson não será, com toda a certeza, nem o primeiro nem o último dos homens a ter percebido que a vocação mais nobre da música talvez seja a de embalar o seu ouvinte até um sono mais ou menos definitivo. Mesmo assim, quando o jovem ouve casualmente um trecho do Concerto para piano K488 de Mozart uns instantes antes da sua morte, só ficam terríveis perguntas no ar… Esteve a música quase a conseguir impedir o suicídio? Ou tê-lo-á, pelo contrário, catalisado com o sabor avant la lettre do céu?
Conforme vai tentando responder à voracidade do sexo, Charles não consegue encontrar a evidência amorosa. O mesmo não sente, contudo, em relação à amizade. Depois de ter dito ao médico da mente que os antigos romanos, quando queriam acabar com as próprias vidas, muitas vezes confiavam tal tarefa insustentável a um amigo ou a um escravo, ele escolhe o amigo Valentin como assistente do seu fim. A sua dedicação a Valentin é, aliás, inequívoca. Ora, só quando estiver a repetir o visionamento de “O diabo, provavelmente” é que o espetador, que com toda a certeza terá corrido para os braços do mito fraterno quando ouve as palavras de Charles pela primeira vez, perceberá que o que Bresson nos mostra, na figura de Valentin, não é um amigo, mas sim um escravo. Um escravo da droga.
Embora o penúltimo título de Bresson pareça estar construído como uma sucessão de sequências alegórico-burlescas que fazem lembrar alguns momentos da obra de Jean-Luc Godard (cuja juventude criadora terá feito o nosso autor sentir-se menos isolado, provavelmente…), é só a partir do momento em que Valentin se torna uma peça central do filme que este adquire uma grandeza insuportável. Como acontece em “Nostalgia” de Andrei Tarkovsky ou em “O passo suspenso da cegonha” de Theo Angelopoulos, a última parte de “O diabo, provavelmente” consegue tornar toda a fita, retrospetivamente, numa obra-prima.
Roland Barthes dizia que, para um cristão, morrer bem é ganhar. Mas houve aqui a dignidade de uma morte assistida? Mais, ficaremos nós a ter mais certezas do que têm os tabloides que, no início do filme, perguntam: houve suicídio ou homicídio? E existirá o conceito de suicídio? Não é sempre o mundo que mata o desesperado, ainda que possa ser ele próprio quem realiza o gesto decisivo? Bresson compreende o desejo de morrer que obceca Charles e quase podemos ouvir o próprio realizador quando o seu personagem reivindica que não há de ser a lucidez suicida a condená-lo na eternidade. Mas o que Bresson verdadeiramente transmite é a desmitificação do próprio suicídio. Este pode ser a última esperança de alguém, mas a sua concretização só potencia o silêncio incómodo que persiste sobre os grandes mistérios da vida. Afinal, tudo é opaco. Afinal, tudo é violento. Tudo é violento porque tudo é opaco.

Nota: Tradução da epígrafe por João Gaspar Simões.


Título original: "Le diable probablement"
Data de estreia: 1977
Realização: Robert Bresson (1901-1999)
Direção de fotografia: Pasqualino de Santis
Interpretação: Antoine Monnier, Tina Irissari, Henri de Maublanc, Laetitia Carcano, Nicolas Deguy
 

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