"O DINHEIRO"

Entre a nascença e a morte de Robert Bresson, os dias são o século XX todo. Foi só por acaso que "O dinheiro" interrompeu em definitivo a sua dádiva cinematográfica, já que este cineasta que, quanto mais envelhecia, mais jovem ficava, pretendia continuar a filmar após tão célebre título estreado em 1983. Nada de cores testamentárias à maneira sinfónica de um Kieślowski... Porém, como a nossa necessidade de sentido quer sempre endireitar as linhas tortas de uma biografia, é impossível ignorar que o assunto da última longa-metragem cometida por este autor é exatamente o mesmo da primeira que ele assinou: uma pessoa que, por se sentir injustiçada, chega ao homicídio, acaba por aceitar a necessidade de castigo penal para a enormidade desse seu ato. Ora, entre um extremo e o outro, quel drôle de chemin!
Sem receio de ir parar ao inferno a abarrotar das teorias, pode levantar-se a hipótese de o implacável Bresson crítico que assombrava o insaciável Bresson criador se ter, a um dado momento, apercebido de que a forma de "Os anjos do pecado" não fazia a menor justiça ao seu assunto. Matar - não dá para brincar ao serviço deste verbo. Escaldado, o autor foi filmando como quem vai perdendo o medo de entrar na água fria: o "Carteirista" apenas furta, "A mulher meiga" apenas hesita entre homicídio e suicídio (a favor deste último), o jovem de "O diabo, provavelmente" já escolhe uma forma de suicídio que pode passar por homicídio, e, finalmente, "O dinheiro" volta a pegar o assunto pelos cornos. A obra vai assim registando um movimento de oscilação da mão entre matar-se a si e matar um outro. O que será pior?
“O dinheiro” é uma espécie de anti-obra-prima. Desde logo, porque o seu autor tenta corrigir nesse filme tudo aquilo que, nas suas tentativas anteriores, ainda poderia ser entendido como discurso fácil sobre a salvação. A prisão onde Yvon vai parar nada tem de exaltante, como a de “Fugiu um condenado à morte”: nela não se aprende o valor de uma liberdade do espírito; as trocas secretas entre prisioneiros já não configuram uma dança dialogal, mas apenas uma espécie de paródia ao consumismo; quando alguém tenta fugir, é apanhado. A relação do protagonista com o dinheiro já nada guarda do inconsciente erotismo que de certo modo predestinara “O carteirista” à redenção. Não há uma mulher que se mantenha fiel a Yvon durante o seu cárcere. E, quando ele falha a tentativa de suicídio, a ressurreição forçada limita-se a acelerar a degradação do seu caráter. Junte-se a tudo isto os jovens que são betos cínicos e as mães que se limitam a jogar o jogo hipócrita do mundo, e fica-se com a sensação de que Bresson queria pôr o seu personagem a atingir aquele mal absoluto, aquele mal pelo mal, que, de acordo com o pároco de aldeia, pode por vezes ser a única possibilidade de um reencontro com Deus. O bem, nos filmes deste autor cristão, é sempre seco, duro, infinitamente discreto, e, em “O dinheiro”, já só pode ser adotado como eventual solução hermenêutica em virtude da intertextualidade que, ela sim, o filme expõe de forma inequívoca.
Mas a anti-obra-prima também se revela na rispidez do tom nela obtido, enquanto culminar de um conjunto de pesquisas formais (a parte em vez do todo, o dizer em vez do exprimir, a exatidão em vez da beleza…) que, ao longo de meio século, foram tentando corrigir o aviltamento que o trágico sofrera ao cair nas mãos do melodramático. A superação do momento musical pela escala, da maestria pelo exercício, ou seja, a simplicidade, livra a reflexão sobre o horror de toda e qualquer veleidade estética. Mesmo as palavras de uma Antígona nos podem parecer demasiado doces se forem comparadas com a simples imagem de um machado erguido pelo som da palavra “dinheiro”. É, aliás, o paradoxo de um diferendo tonal que permite que Bresson e a sua grande referência romanesca, Fiódor Dostoiévski, não tenham caído numa conversa ensurdecida pela aptidão para se fazerem ouvir.
Sim, Bresson adaptou Bernanos, mas dialogou com Dostoiévski. O esqueleto de “Crime e castigo” só não se torna a carne de “O carteirista” porque o crime debatido no filme de 1959 não tinha a gravidade daquele que é discutido no romance de 1866. Mas está lá tudo o resto. Como já estava em “Os anjos do pecado”. Como comparece o motivo do machado agressor em “Se calhar, Balthazar”. Como “A mulher meiga”, apesar de inspirada noutro texto do mesmo escritor, de certo modo parece consumar o que seria o destino da irmã de Raskólnikov se se tivesse casado com o seu pretendente. E, mesmo se “O dinheiro” é uma adaptação de Lev Tólstoi, na verdade ele termina esse diálogo com Dostoiévski com a clarificação pelo cineasta de um aspeto de “Crime e castigo” que pode passar despercebido ao leitor grosseiro: o que releva no castigo não é a sua eficácia socialmente organizada, mas a possibilidade de o infrator o aceitar intimamente. E isto é um ato de amor a um texto: sublinhar nele aquilo que outros apenas tresleem.
Se todo o castigo não escolhido por quem o merece é sempre injusto, também todo o dinheiro é sempre falso. Não é propriamente dinheiro que pretendemos se o procuramos avidamente. Isso é bastante claro a propósito da personagem de Yvon quando, ao matar a personagem mais positiva da obra bressoniana (a viúva grisalha), reivindica tal deus visível. Mas, ainda mais importante do que isso, é o facto de a circulação do dinheiro constituir menos uma dinâmica económica neutra do que uma forma de revelação e manutenção da estrutura classista: o miúdo de alta sociedade safa-se incólume, o casal de negociantes de material fotográfico apenas fica sem um negócio, o seu funcionário já vai para uma prisão de alta segurança, e o desprotegido Yvon perde tudo. Tudo. Perante isso, a possibilidade de uma moral de índole cristã ser articulada exige de facto uma subtileza radical. Pois é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que provar a infinita complexidade da inocência de um homem.


Título original: "L'argent"
Data de estreia: 1983
Realização: Robert Bresson (1901-1999)
Direção de fotografia: Pasqualino de Santis, Emmanuel Machuel
Interpretação: Christian Patey, Vincent Risterucci, Caroline Lang, Sylvie van der Elsen, Michel Briguet



 

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