"REMINISCÊNCIAS DE UMA PAISAGEM DE INVERNO"

"cada vez
que a lâmina
velha
da Primavera
percorre a espuma invernal
repete-se o medo egoísta
de que sob o branco acídulo
já nada exista"

Pedro Ludgero


Disse uma vez Jacques Rivette que um processo de criação artística se assemelha à libertação por um arqueólogo de um objeto preso na terra: se este for puxado com demasiada pressa e incúria, pode ser danificado até à irrelevância. Não valerá esta afirmação para todos os andamentos e propósitos criativos, mas parece adequado recuperá-la para falar de “Reminiscências de uma paisagem de inverno”, já que a palavra cuidado será uma das primeiras que surgirá na boca de um comentador após o visionamento deste título do Lucas Tavares, cineasta nascido no Brasil, mas com muita vida portuguesa a montante e a jusante desse detalhe.
As luvas que, no início do filme, protegem as mãos de quem manipula documentos de um arquivo visual dão precisamente esse tom de grande cuidado que, a despeito das mudanças radicais de modo, unifica todo o labor que se vai seguir, seja o da mão subentendida que, pegando numa câmara, se torna ela própria criadora ativa de um imaginário paisagístico, seja o da mão vigorosa que raspa o musgo do tronco de uma árvore para nele descobrir uma inscrição antiga.
O cuidado traduz-se sobretudo no rigor com que Lucas Tavares aborda a questão do movimento ao longo do seu filme. A partilha dos diapositivos com imagens fixas da paisagem natural de Arouca (distrito de Aveiro) faz-se sem fundir o tamanho desses documentos com o próprio enquadramento do filme. A ampliação só se dá (só se torna merecida, digamos) quando a imagem documental passa a ter movimento, nos filmes de 8mm. Já o raccord entre esse material pré-existente e aquele que o realizador captou na Serra da Freita utiliza a obscuridade como critério – o preto-e-branco inesperado das imagens de arquivo transita para a noite das imagens inéditas. Exatamente como na teorização de Sergei Eisenstein, que explicava a passagem de uma conceção rítmica de montagem para uma conceção tonal através de um ponto de vista cada vez menos direto sobre o significado de movimento, o que nesta parte de “Reminiscências de uma paisagem de inverno” se passa a mover é a Luz e a Névoa. Mesmo as turbinas eólicas perdem ritmo e cedem-no à massa de gotas de água suspensa no ar, pincel vivo que, nas mãos de um vento moroso, quase não altera a configuração plástica onde o espetador é imerso. E, contudo, altera. Imagens-tempo.
Segundo declarações de Lucas Tavares, a inscrição que, no termo primaveril da fita, uma mulher descobre sob o musgo de um tronco de árvore foi feita pelo seu avô. Essa mulher é a sua própria mãe. Toda a sua família fora, aliás, assídua frequentadora da Serra da Freita. Enfim, as madalenas não andam propriamente aí à mão de saborear. E assim, como num conto maravilhoso, a reminiscência exige que se franqueiem três portões para a ela termos acesso: primeiro, o portão da noite (que se dissipa em manhã), depois, o portão do nevoeiro (que se dissipa em clareza), por fim, o portão do musgo. Mas nada saberemos sobre a dita inscrição. E, em todo o caso, se o realizador não incluiu toda esta informação autobiográfica no seu filme, talvez lhe façamos melhor justiça se o lermos de um modo menos devassador.
As imagens da paisagem serrana custaram ao seu documentarista todo um inverno de isolamento e dureza de condições. No topo das montanhas, a estação atinge o esplendor da sua essência, essa que radicalmente expulsa o humano dos espaços que ela invade. No seio da sua austeridade (transitória, mas quase distópica), a possibilidade de calor humano parece já só existir no interior de velhos filmes ou sob camadas silenciosas de musgo. O inverno faz do verão uma mera imagem de arquivo.

Data de estreia: 2021
Realização e direção de fotografia: Lucas Tavares (1995-?)

 

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