"ENCONTRO EM ST. LOUIS"
Em Portugal, este filme é conhecido como “Não há como a nossa casa”, título característico daquilo a que poderíamos chamar uma “estética de distribuidor”, com os seus subtis acenos à rentabilidade dos valores familiares. No entanto, há pelo menos uma edição portuguesa do filme em DVD que optou por uma tradução quase exata do título original, respeito que sempre nos merece maior respeito. É essa a versão que aqui acolhemos.
É tudo uma questão de intensidade. Na primeira estação, tenta gerir-se a incógnita (produtora de afetos contraditórios, mas francamente intensos) que nos chega das figuras adultas. Na segunda estação, aprende-se a lidar com aqueles que têm o mesmo tamanho emocional que nós, tentando reduzi-los à evidência de um só. Depois, vem a longa travessia pela selva das dificuldades, quando se assume o cuidado consciente das figuras infantis. Por fim, diz-se que podemos voltar a focar a atenção em brinquedos irresponsáveis, como uma coleção de chapéus – mas é preciso chegar lá, para saber se é mesmo assim como se diz.
Quem cresceu numa família de classe (pelo menos) média, tem noção de que boa parte deste percurso se encontra normalmente superprotegido pela infantilidade que o dinheiro burguês consegue comprar. Há sempre um pai não muito feliz que trabalha (e assim conhece a verdade do mundo) para sustentar esta inocência artificial. Bem, hoje, a mãe também trabalha, fornecendo mais combustível às necessidades da economia capitalista do que às reivindicações do feminismo. Mas, naquele tempo, era ainda possível que o enterro de bonecas, a sedução de rapazes, a preparação de um ketchup ou a visita a uma Exposição Universal (um desses célebres eventos onde, sem querer e sem crítica, se expunha o racismo transversal à história humana) – era possível que tudo isso fosse vivido como manifestação de puerilidade. Mulheres, jovens e crianças (e diz-se que até os velhos) eram solidários nesse Éden que os congelava na perfeição do presente. Para quê emigrar para o futuro (para um lugar-papão como Nova Iorque, onde é bem mais fácil imaginar uma distopia de Fritz Lang do que um parque infantil), quando aqui, agora, em St. Louis, nos sentimos inequivocamente felizes?
Embora o filme de Vincente Minnelli se coadune, na aparência, à ética reacionária do estúdio M. G. M., quem souber ler nas suas entrelinhas (acidentais?) verá que nele não se esconde que o nojo que as personagens verbalizam face à mudança é o fruto claro de uma situação de privilégio. Se as raparigas dizem que o terreno da Exposição Universal parece uma fairyland, os rapazes dizem que isso custou uns largos milhões. Se a filha mais velha grita que detesta dinheiro, o seu papá lembra-a de que… também o gasta! Até ao happy end forçado que praticamente o destrói, “Encontro em St. Louis” nunca deixa que o en-canto esconda aquilo que de facto o permite. Um dos momentos mais subtis da fita surge quando a mãe de família, para integrar o pai de família no familiar-cançonetismo, diz que vai baixar a música para o tom de que ele é capaz: e assim o filme entra no inverno, na tristeza, na lucidez. No realismo. Mesmo se as crianças continuam a tentar brincar, e os adultos continuam a fornecer encenações que permitem a brincadeira…
De facto, as mulheres sentiam-se tentadas a usar estratagemas típicos de pianista acompanhador. Pois, naquele tempo, era aos homens que pertencia o solo da iniciativa: dar o primeiro beijo, pedir em casamento, decidir onde assentar arraiais… Ainda que os argumentistas do filme tenham adulterado um pouco o material literário no qual se inspiraram, terão porventura conservado o essencial da experiência de Sally Benson no início do século XX: por muito que as mulheres recorressem à sedução, era só quando a sua raiva explodia com sinceridade que conseguiam influenciar a vontade dos homens.
Nesse sentido, é muito importante a distinção que Minnelli estabelece entre as personagens das irmãs mais velhas, tentando afastar-se da infância à velocidade das artes de sedução, e as duas meninas mais novas que, nas suas verbalizações aparentemente inermes dos sentimentos de ódio, vão aludindo, como quem não quer a coisa, a questões como o alcoolismo ou a violência doméstica – realidades com certeza frequentes no meio burguês, mas sobre as quais não se falava abertamente em frente das crianças ou dos acriançados espetadores de filmes musicais. Os únicos momentos de “Encontro em St. Louis” em que as mulheres conseguem mudar a vontade dos homens correspondem a erupções de ódio: Esther arranca o primeiro beijo de John quando lhe bate por o supor agressor da irmã mais nova (e não quando encena um momento de intimidade ao desligar as luzes de casa); o pai só volta atrás da decisão de a família ir viver para Nova Iorque quando a pequena Tootie agride violentamente os bonecos de neve (simbólicos da família congelada), menos com um bastão do que com o verbo “matar”. Ou seja, é só quando a agressividade, que as crianças ainda assumem, reemerge no seio do verniz adulto que alguma coisa efetivamente muda. Enquanto manifestação do amor mais profundo, o ódio talvez seja o único sentimento revolucionário a que o burguês se pode agarrar. As mulheres, de resto, só não sabiam isso ao nível consciente…
O filme de Minnelli tem méritos historicamente firmados, desde o prazer visível na composição da cor quando esta ainda não se identificava por completo com o realismo fotográfico, até ao trabalho, à época experimental, de efetivamente integrar as canções no tecido narrativo. Algumas das canções tornaram-se, aliás, merecidamente célebres. Porém, talvez o mais importante que haja para dizer sobre esta banda sonora tenha a ver com a progressão que a disforia narrativa impõe aos seus números. Pois, quando Judy Garland canta “The boy next door”, ainda estamos no âmbito de um entretenimento da M. G. M., fingindo que aquela letra de canção corresponde ao que realmente pensa um ser desejante; mas já é quase Stanislavsky a dirigir um texto de Tchékhov quando a voz da mesma atriz, fingindo acreditar no consolo bondoso de “Have yourself a merry little Christmas”, desencadeia a emersão violenta de tudo o que permanecia em subtexto. No enquadramento dramatúrgico, esta canção vale muito menos por aquilo que diz, do que por aquilo que cala.
Em termos visuais, o ponto alto de “Encontro em St. Louis” atinge-se na cena em que Esther pede a John que a ajude a escurecer a casa, evocando o mito cinematográfico de que a encenação luminosa pode alterar o valor de beleza de uma mulher. No entanto, mesmo aqui, quando Minnelli faz a sua cena da Fontana di Trevi, o esplendor da estética de estúdio parece resultar sobretudo da incapacidade em controlá-la de forma cabal: nota-se muitas vezes uma subtil décalage entre o gesto que os atores fazem para apagar cada uma das luzes do cenário e o esforço concertado da equipa de direção de fotografia para recriar os novos ambientes visuais que resultam desses gestos. A impossibilidade de perfeição técnica descamba em puro prazer do filme.
E, por fim, não pode faltar uma palavra para a interpretação de Judy Garland. A atriz não queria voltar a representar um papel de adolescente quando já tinha mais de vinte anos de idade e começava a sentir a necessidade de fazer evoluir o seu repertório profissional. Ora, talvez seja o humor com que Garland assumiu a personagem de Esther, a ironia distanciada da sua performance, que tão bem fixou em película a hesitação entre ser criança e ser adulto. Em todo o caso, que o ecrã nos tenha dado imagens como as de Garland ou de Jean-Pierre Léaud é uma das poucas razões para que a espécie humana não tenha sido apenas um erro colossal.
Título original: "Meet me in St. Louis"
Data de estreia: 1944
Realização: Vincente Minnelli (1903-1986)
Interpretação: Judy Garland, Margaret O'Brien, Lucille Bremer, Mary Astor
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